Tipologia
junguiana

Como funciona o sistema? Funções, stack, tipos e dicotomias

Parte 2: funções e a formação do stack

A história que levou aos 16 conjuntos de 4 letras representando os tipos vem de “Os Tipos Psicológicos”, de Jung, e lá descrevem-se as 4 funções cognitivas básicas, além das orientações extrovertida (para fora) e introvertida (para dentro). A partir disso, Jung chega a 8 tipos psicológicos que possuíam uma função dominante e uma contraparte inferior, o que mostraria certo balanceamento psíquico entre nosso lado mais valorizado e consciente e outro mais desvalorizado e inconsciente. Com o passar do tempo, a teoria evoluiu à noção de “stack” (“pilha”, “ordem” ou “hierarquia”) apresentada aqui: uma leitura da teoria de Jung e de outros textos e observações empíricas. Por isso, o destaque e a importância não são nas letras, simplificações feitas por Myers e Briggs, mas sim nas funções cognitivas de Jung. É delas que derivam todas as análises importantes e densas da tipologia, e as letras são meras derivações que mostram um ou outro padrão. O uso das letras, portanto, não é impossível, apenas limitado se feito sem consciência das funções. Dois tipos que se veriam muito parecidos nas letras, por terem as três primeiras letras idênticas (como INFP e INFJ, por exemplo), não possuem funções em comum e, portanto, suas semelhanças, mesmo que observáveis, são majoritariamente superficiais. Quanto mais se aprofunda nas funções, menos esses dois tipos se parecem.

O stack é composto de quatro funções em uma ordem específica: função dominante, função auxiliar, função terciária e função inferior. Qual função entra em cada lugar, se é introvertida ou extrovertida, e como isso se transforma num tipo de 4 letras têm regras de funcionamento e não são aleatórias. Para explicar como funciona, então, é importante esclarecer alguns conceitos.

Dependendo do contexto, o que é chamado de “funções de Jung” podem ser 4 ou 8. As quatro funções identificadas por Jung são O Sentimento (F – Feeling), o Pensamento (T – Thinking), a Sensação (S) e a Intuição (N). Uma delas sempre será a dominante de um tipo, as outras três seguindo como auxiliar, terciária e inferior. No entanto, também em “Os Tipos Psicológicos”, Jung estuda as atitudes introvertida e extrovertida e nota sua presença nas funções. Assim, cada uma das 4 funções básicas teria uma versão introvertida (representada por um i minúsculo) ou extrovertida (representada por um e minúsculo). A função T, por exemplo, pode ser tanto Pensamento Extrovertido (Te) quanto Pensamento Introvertido (Ti). Nesse contexto, são 8 funções cognitivas (Te e Ti, Fe e Fi, Se e Si, Ne e Ni). Por isso, quando se diz que alguém tem a função Sentimento dominante, diz-se. Indistintamente de Fe ou Fi. Quando se diz que alguém tem a função Sentimento Introvertido dominante, se diz especificamente de Fi.

As funções dividem-se em racionais (de julgamento) e irracionais (de percepção). O processo racional do julgamento está associado à tomada de decisões e se baseia em princípios claros, daí a ideia de racionalidade. Existem, em Jung, dois tipos diferentes de processo racional: o Pensamento (T) e o Sentimento (F). Alguns processos racionais se baseiam em pessoalizações e valores (o Sentimento) e outros em raciocínios impessoais e não-valorativos (o Pensamento). O estabelecimento de critérios claros, mesmo quando casuísticos, que orientem uma tomada de decisões e a preferência por essa conclusão referente à decisão fazem parte do processo de julgamento. Por outro lado, os processos irracionais estão relacionados à absorção de informações. Uma psique saudável requer que ambos os processos estejam presentes no indivíduo, ainda que um seja sempre valorizado (a função dominante), porque para se decidir sobre o mundo é preciso extrair informações dele, e uma vida de pura absorção impede que se concluam as ações com decisões e princípios com um mínimo de consistência. No caso da percepção, ela se divide entre os processos irracionais de Sensação (S) e Intuição (N), orientados respectivamente para o mundo concreto e o mundo abstrato. Esses dois processos costumam afastar-se da moralidade ou dos princípios coerentes em nome de flutuar ao sabor do que lhe chega na percepção, e por isso são classificados irracionais. Dessa forma, uma pessoa com Pensamento ou Sentimento como função dominante é de um tipo racional, por possuir uma função racional dominante, e uma pessoa com Intuição ou Sensação dominante pertence a um tipo irracional.

As pessoas podem ser extrovertidas, se majoritariamente orientadas para o objeto (pelo mundo externo), ou introvertidas, se majoritariamente orientadas pelo sujeito (pelo mundo interno). A definição do que é o sujeito e o que é o objeto, na vida real, nem sempre é fácil e está muito pouco relacionada à sociabilidade, o que faz esse tema praticamente irrelevante para a definição de um tipo. Ainda que pessoas num pólo extremo da sociabilidade sejam provavelmente extrovertidas e pessoas no outro extremo tenham tendência a ser introvertidas, isso não é regra porque depende de dois fatores: 1) o que faz parte dos interesses objetivos ou subjetivos da pessoa e; 2) o quão balanceada ela está, no momento, entre suas funções extrovertidas e introvertidas. Existe um número enorme de extrovertidos que se confundem como introvertidos simplesmente porque os objetos a que estão vinculados não são pessoas, encontros sociais e situações similares. Da mesma forma, existe um número (menor) de introvertidos cujas interações com o objeto são justamente no campo social, e passam a impressão de extrovertidos. O trabalho aqui é mostrar que o senso comum sobre extroversão e introversão é radicalmente diferente do uso junguiano da palavra, embora o segundo tenha evoluído do primeiro. Para uma pessoa, um objeto externo a ela pode ser tanto um bloco de carnaval quanto um bom livro, uma série nova, um clipe de música ou mesmo um trabalho solitário com planilhas que lhe estimulem intelectualmente. Definir a linha exata requer entender o contexto e a forma como determinada atividade chega para o indivíduo, mas existem algumas condutas mais claramente extrovertidas e outras mais claramente introvertidas. Isso não tem relação alguma com “se energizar com pessoas” ou “precisar de tempo sozinho”, outro erro crasso cometido por algumas definições simplórias e equivocadas do que significam as duas atitudes.

A atitude extrovertida tem suas ações principais e mais importantes dialogando, compartilhando e seduzindo-se pelo objeto. Cada função extrovertida tem uma abordagem diferente a esse objeto, que podem ser outras pessoas, fontes de conhecimento e informação, experiências e oportunidades, especulações hipotéticas, novidades, estruturas de normas, entre outras. A atitude extrovertida costuma ser mais flexível e adaptada ao objeto, mas também pode se propor a controlá-lo. Desenvolve, de qualquer forma, uma relação mais íntima com ele. As funções extrovertidas lidam com o objeto pelo que ele é, especialmente as de percepção extrovertida (Ne e Se). Podem adaptar-se a ele, seduzidos pelo que ele oferece, ou sob uma perspectiva mais utilitária. Uma pessoa sempre interessada em novos videoclipes de música, um empresário sempre em busca de novos ganhos e táticas para ampliar a empresa, uma pessoa que sente que adapta seu discurso (ou até sua personalidade) dependendo das pessoas com quem interage, todas essas podem ser manifestações da atitude extrovertida.

A atitude introvertida retém no sujeito impressões, ideologias e princípios subjetivos rejeitando, diminuindo ou se se sentindo diminuída pelo objeto, dando prioridade àquilo que surge ou é retido pelo próprio indivíduo. Na atitude introvertida, as coisas ganham valor pelo apego pessoal, e por isso dizem respeito a interpretações, reflexões, apegos e a uma rejeição da realidade em nome do que já foi subjetivamente escolhido. As funções introvertidas criam apegos ao que foi pessoalizado, ou a premissas lógicas que dialogam com o próprio entendimento do sujeito, ou com fatos e conceitos que têm importância monumental para o indivíduo. A atitude introvertida busca ser menos influenciada pelo objeto, e acaba dedicando mais a um controle ou exploração de si, e não das experiências externas. É mais interessante para as funções introvertidas a postura reflexiva criada pelos sujeitos sobre a realidade do que a realidade em si. Um filósofo obcecado em refinar conceitos sem consultar fontes externas ou uma pessoa que precisa internalizar cada acontecimento especial um por um são exemplos de manifestações da atitude introvertida.

Não existe “ambiversão”. Isso porque, no próprio modelo das funções, todos têm funções introvertidas e extrovertidas relativamente acessíveis, o que muda é o contato, naquela época de vida, com umas ou outras. O ponto principal para se entender por que o modelo das funções junguianas funciona como funciona é o de equilíbrio e balanceamento. A lógica de Jung parte de pares de opostos inseparáveis que explicariam parte da psique: a coroa não existe sem a cara, o polo magnético norte não existe sem o sul etc. Existem predominâncias, e isso faz a diferença porque, para a psicologia junguiana, os lados negativos devem ser compreendidos porque têm algo a acrescentar no indivíduo. Por esse motivo, as funções em cada tipo entram em pares opostos, uma mais valorizada e uma menos valorizada. Uma dominante, uma inferior oposta à dominante. Uma auxiliar, uma terciária oposta à auxiliar. Cada uma tem graus de consciência diferentes exatamente porque, se todas fossem desenvolvidas e igualadas em capacidade, o indivíduo se tornaria um ser perfeito, incapaz de aprender consigo mesmo, atingindo uma situação psíquica incompatível com a falibilidade humana. Dessa forma, há que se entender que as pessoas têm todas as 4 funções, duas extrovertidas e duas introvertidas, mas cada tipo possui prioridades específicas que orientam suas tendências e preferências.

 

O stack funciona da seguinte forma: o oposto de uma função opera na mesma lógica, racional ou irracional. Ou seja, uma dominante racional tem uma inferior racional. O eixo dominante/inferior, por esse motivo, é mais desbalanceado, racional ou irracional. Uma função extrovertida tem oposta introvertida. A Sensação (S) é oposta à Intuição (N). Portanto, a Intuição Extrovertida (Ne) se opõe à Sensação Introvertida (Si) e a Intuição Introvertida (Ni) se opõe à Sensação Extrovertida (Se). O Pensamento (T) é oposto ao Sentimento (F). Portanto, o Sentimento Extrovertido (Fe) se opõe ao Pensamento Introvertido (Ti) e o Sentimento Introvertido (Fi) se opõe ao Pensamento Extrovertido (Te). Por motivos de equilíbrio entre o mundo interno e externo, se a dominante é introvertida, a auxiliar é extrovertida e vice-versa. Nesse aspecto, se há uma função Si, irracional e introvertida, como dominante, a função Ne, irracional e extrovertida, será inferior. A função auxiliar será uma função racional extrovertida (Fe ou Te) e a terciária será oposta à auxiliar (Ti ou Fi, respectivamente). O tipo pode ser expresso, dessa forma, assim: Si-dom, Te-aux, Fi-tert e Ne-inf (SiTeFiNe ou, resumidamente, SiTe). Com isso, todos os processos psicológicos são contemplados no tipo, com prioridades específicas em cada um. Para este texto, resta analisar o papel de cada função (dominante, auxiliar, terciária ou inferior) no processo cognitivo. A descrição extensa de cada função, bem como seu papel em diferentes posições, será relegada a outros textos.