Tipologia
junguiana

Como funciona o sistema? Funções, stack, tipos e dicotomias

Parte 3: Papel das funções e dicotomias

A função dominante (dom) é por definição a mais consciente. Ela trabalha sendo a porta-voz da consciência no indivíduo, seu modus operandi básico, aquela em que se orientam por e para o método de pensamento. Por esse motivo, é quase possível dizer que a função dominante é a consciência do indivíduo, e até por isso nem sempre é percebida como tal. O costume e a preferência por ela são tão grandes que, por vezes, o indivíduo se identifica mais com outras na medida em que o uso destas é mais surpreendente e animador. A dominante é a primeira função que desenvolvemos e que se destaca na infância, tendo grande predominância nessa fase da vida, até amadurecer. O papel consciente e preponderante da dominante guia nossos principais raciocínios. Embora isso não incorra em determinismo, muitas pessoas seguem padrões similares de gostos dentro de suas dominantes. Essa inclinação para uma forma específica de raciocínio não significa necessariamente um talento ou habilidade em nenhum lugar. O que acontece, no entanto, é que muitas pessoas, por terem aquela forma de ver o mundo como dominante, acabam se inclinando mais para certas áreas e treinando-as ou reforçando-as. As aptidões da dominante são limitadas à forma como cada indivíduo a usa. Uma função Se (Sensação Extrovertida) dominante, sendo bastante direta e factual, por exemplo, pode se manifestar em “aptidões” diferentes: algumas mais corporais (como esportes ou dança), ou talvez um gosto por aproveitar oportunidades concretas e desenvolver táticas empresariais, ou numa intelectualidade bem factual, que tem nos livros e informações seu objeto concreto de deleite (costumando tratar a ciência de uma forma altamente factual e empírica), ou mesmo numa combatividade revolucionária e política mais corporal, direta e prática. Todas essas são manifestações diferentes da Se que podem aparecer na dominante.

A função auxiliar (aux) funciona como principal ponto de equilíbrio e apoio à dominante. Se a dominante é racional, a auxiliar é irracional; se é introvertida, a outra é extrovertida. Também por isso, a auxiliar costuma despontar na psique, ganhar contornos mais definidos, logo depois da dominante, principalmente na adolescência. Seu papel inclui tanto dar um ferramental para os interesses principais e majoritários da dominante quanto oferecer um contraponto que equilibre suas vontades. Quanto menos evidente a auxiliar, mais a dominante se aproxima das descrições de Jung em Os Tipos Psicológicos, porque se aproxima de uma hipotética descrição “pura” do tipo. A auxilia traz uma dimensão mais versátil ao tipo, que se permite interagir com o mundo que não é sua atitude principal (trazendo algo do mundo subjetivo no caso do extrovertido ou algo do mundo externo no caso do introvertido). A auxiliar permite o diálogo entre dois mundos (racional/irracional e subjetivo/objetivo), e isso enriquece o indivíduo em suas ferramentas e capacidade de equilibrar extremos. Ela não consegue chegar ao grau de consciência da dominante, até por isso com frequência seu uso é percebido e confundido com a dominante, mas ela consegue ser bem desenvolvia e passa a ser fundamental no funcionamento do tipo.

A função terciária (tert), a menos aprofundada nos estudos junguianos, possui um papel peculiar, talvez o mais ambíguo do stack, e por isso precisa ser observada com cautela. Ela tem a mesma orientação da dominante (ambas são extrovertidas ou introvertidas), mas um grau mais baixo de consciência que costuma deixá-la com uma manifestação pueril, frequentemente infantilizada da função. Em algumas pessoas, principalmente na adolescência, ela é pouco aparente ou individualizada, e costuma aparecer mais conforme avança a vida adulta. Em outras pessoas, a manifestação da terciária pode ser surpreendente, bastante inchada, o que faz as pessoas confundirem sua presença com a de uma dominante, justamente por ser mais percebida, sendo algo presente, mas não tão presente a ponto de ser o padrão. Dentro da comunidade, essa confusão acontece principalmente em usuários de Pensamento (T) terciário que se identificam como T-dominantes e em usuários de Intuição (N) terciária que se identificam como N-dominantes. Mesmo assim, um estudo cauteloso da função terciária demonstra que, mesmo quando muito presente no indivíduo, ela tem nuanças diferentes. O comportamento pueril da função faz com que ela frequentemente pareça “empolgada”. Demonstra um uso mais intenso e confiante do que suas capacidades de fato teriam, ou um uso exasperado, exagerado, sem tanto controle ou refinamento como a dominante. Além disso, ao usar a terciária, por vezes a pessoa pode parecer de fato uma criança, descobrindo um jeito novo de agir e ver o mundo. Muitas vezes a descoberta da terciária gera algum sentimento de grande revelação ou mudança de paradigma na vida da pessoa, e ela pode se ver agindo de forma bastante diferente, ou até sentindo que “mudou de tipo”.

Por fim, a função inferior (inf) representa o necessário calcanhar-de-Aquiles do homem. Oposta à dominante, ela é a porta do inconsciente e ela mesma têm um caráter altamente inconsciente. Por isso mesmo, a presença dela na psique é errática, problemática e bastante variável. Por ser estática (ou seja, incapaz de desenvolver-se para chegar à consciência), ela funciona como um aviso constante do inconsciente dos defeitos e pontos de aprendizagem do indivíduo. Partindo-se da premissa simples de que integrar perfeitamente todos os campos da consciência levaria o homem a uma perfeição sobre-humana incapaz de seguir aprendendo, percebe-se o porquê de a inferior não poder ser desenvolvida. Isso não significa, no entanto, que ela sempre apresente os mesmos problemas. Até mesmo para que seja capaz de ensinar lições diferentes ao longo da vida, a função inferior se manifesta de formas diferentes, nenhuma delas perfeitamente saudável ou capaz, mas algumas mais doentias ou violentas que outras. O papel do indivíduo em lidar com a inferior não é sucumbir completamente a suas pulsões, mas também não reprimi-la. Interagir com ela e achar conciliações e aprendizados é uma tarefa que segue ao longo dos anos. Em boa parte das vezes, principalmente quanto mais jovem for o indivíduo (por não ter tido tantas exposições a situações que se beneficiariam do uso da inferior), é bem comum que a pessoa simplesmente ignore ou reprima a existência da inferior e de suas demandas. É comum pessoas de Sentimento (F) inferior declararem que não são afetadas por valores ou emoções, por exemplo, sem perceber a influência sutil da função sentimento em sua vida. Ao seguir-se isso, a inferior por vezes manifesta-se na percepção e aceitação da insegurança no campo dominado por ela. A essa insegurança se acompanha algo de romantização ou fetichização dessas características, que passam a ser desejadas. Em algumas ocasiões, esse desejo leva à tentativa de um uso exagerado, simplista, torto e, por vezes, “em surto” da função inferior, que alcançou um ponto de seduzir o indivíduo que o leva a querer usar a inferior sem saber como. É costume que pessoas que conhecem o indivíduo há tempos notem mudanças de opinião e comportamento quase opostas, mas que também, de certa forma, sempre estiveram ali. Nessas oscilações, e na resposta de cada pessoa às situações externas e internas, vai-se construindo a relação com a inferior.

É desse stack que 8 funções, organizadas em pares de opostos (FiTe, FeTi, SiNe e SeNi) combinam-se em grupos de quatro para formar os 16 tipos. A partir da década de 1940, Isabel Briggs-Myers e Katherine Briggs seguiram um caminho semelhante, a partir das funções, para gerar as dicotomias. Ainda que seu trabalho fuja em demasia da proposta de funções cognitivas e por isso hoje funcione mais em ambiente sem compromisso com o estudo psicológico, como empresas, este site usa suas siglas para referir-se aos 16 tipos expressos pelas funções, que também poderiam ser notados por elas, ou pelas duas primeiras funções mais fortes que lhes caracterizam (um ESFP, por exemplo teria SeFi fortes e TeNi fracas e poderia ser expressado por essas letras). As dicotomias, ainda assim, têm algum valor marginal na tentativa de se falar de outras tendências gerais que acompanham o tipo. Mas, para tratar melhor delas, é importante entender como as funções traduzem-se nas letras/dicotomias.

Os tipos extrovertidos (ou seja, com funções dominante e terciária extrovertidas; funções auxiliar e inferior introvertidas) recebem a letra E na tradução feita por Myers e Briggs. Tipos introvertidos (ou seja, com funções dominante e terciária introvertidas; funções auxiliar e inferior extrovertidas) recebem a letra I na tradução. Tipos com função dominante ou auxiliar de Sensação (ou seja, tipos com função Sensação mais forte que a função Intuição, tendo assim mais tendência de percepção do mundo concreto) receberam a letra S. Tipos com função dominante ou auxiliar de Intuição (ou seja, tipos com função Intuição mais forte que a função Sensação, tendo assim mais tendência de percepção do mundo abstrato) receberam a letra N. Tipos com função dominante ou auxiliar de Sentimento (ou seja, tipos com função Sentimento mais forte que a função Pensamento, tendo assim mais tendência de julgamento por princípios valorativos) receberam a letra F. Tipos com função dominante ou auxiliar de Pensamento (ou seja, tipos com função Pensamento mais forte que a função Sentimento, tendo assim mais tendência de julgamento por princípios impessoais) receberam a letra T. Para fazer a diferenciação de funções, usa-se a última letra. Tipos com funções fortes de Julgamento Extrovertido (“Je”, ou seja, Fe e Te) e Percepção Introvertida (“Pi”, ou seja, Si e Ni) recebem a letra J, “Julgadores”. Tipos com funções fortes de Percepção Extrovertida (“Pe”, ou seja, Se e Ne) e Julgamento Introvertido (“Ji”, ou seja, Ti e Fi) recebem a letra P, “Perceptivos”. Isso faz com que tipos introvertidos que tenham Julgamento dominante (TiSe, TiNe, FiSe e FiNe) recebam a letra P, e tipos introvertidos que tenham Percepção dominante (NiTe, NiFe, SiTe e SiFe) recebam a letra J. Isso também faz com que existam tipos que compartilham 3 letras, mas nenhuma função.

A dicotomia E x I, então, representa a Extroversão versus a Introversão. No sentido usado aqui, buscando aproximar-se ao máximo do original junguiano, como dito, pouco tem a ver com sociabilidade, estímulos à fala ou “recarregamento de energias”. As diferenças foram explicadas acima. A dicotomia N x S, a mais incompreendida de todas, por se tratar de processos irracionais majoritariamente pré-verbais difíceis de serem exemplificados, consiste na preferência de absorção de informações do mundo concreto ou do mundo abstrato. Por se tratar de um arquétipo, a forma como cada indivíduo usa sua função e enxerga o mundo pelo prisma concreto ou abstrato varia, e certas coisas (como livros, por exemplo) podem ser lidas por uma pessoa pelo prisma concreto e por outra pelo prisma abstrato. Definir essas fronteiras de pessoa para pessoa também geralmente requer bastante contato e exercício de alteridade para, a partir dos conceitos, entender se a preferência da pessoa vai para o mundo concreto (factualidade, empiria, dados, experiências e os cinco sentidos) ou para o mundo abstrato (símbolos, conexões, especulações e abstrações), mas em vários casos essa diferença pode ser bastante gritante. A prática leva à capacidade de identificação desses momentos. Da mesma forma, a dicotomia T x F não diz respeito a emoções propriamente ditas, ainda que seja costume que tipos F tenham mais facilidade de compreendê-las e, portanto, expressá-las, mas esse não é o centro do tema. Como dito anteriormente, a preferência por princípios, interpretações e julgamentos mais pessoais ou mais impessoais é a chave para a compreensão do que seria esta dicotomia.

No caso das três primeiras dicotomias, graças aos testes (e outros vieses da própria cultura virtual que incentiva a juventude a se ver de uma maneira específica), existem pesadas tendências de incorreção no diagnóstico de um tipo, ainda mais forte nas duas primeiras. A maioria dos erros de tipo ocorre de E para I e de S para N, ou seja, de extrovertidos que se identificam erroneamente como introvertidos e de sensoriais que se identificam erroneamente como intuitivos. Por esse motivo, a compreensão dos tipos INxx requer cautela redobrada, na medida em que são muito propensos a serem fetichizados, ocorra essa fetichização pelo ponto “positivo” (ou seja, pessoas que se consideram mais inteligentes, mais conscientes, mais individuais, mais diferentes e mais únicas por fazerem parte desses tipos) ou pelo ponto negativo (ou seja, pessoas que compartilham certo “orgulho ferido” e cultivam impressões tão simplistas quanto a interpretação positiva, se orgulhando negativamente de serem tipos “excluídos”, “isolados” ou “estabanados”). Nenhuma dessas interpretações faz sentido. Algo similar acontece com os tipos ENxx, que também podem sofrer outro tipo de fetichização. Mais sobre isso será explorado num texto posterior. Com relação à terceira dicotomia, existe uma fetichização não tanto acompanhada de vieses para certos tipos. Existe uma concepção errônea de que Pensadores (Thinkers – T) seriam mais inteligentes, ou que sua lógica seria imune a falhas, ou que seriam necessariamente mais factuais e competentes, o que gera fetichização e sentimento de superioridade por quem se identifica dessa forma, e tentativa de inferiorização e taxação dos usuários das funções Sentimento (Feelers – F) como sentimentais, emotivos, chorões e instáveis. Este erro deve ser evitado por qualquer pessoa que queira entender a tipologia a fundo e não perpetuar estereótipos ou sensações de superioridade, ou usar a tipologia da pior forma possível: como caixas de valoração.

Já a última dicotomia serve para administrar o que seria uma dinâmica de controle versus adaptabilidade. Tipos Julgadores (J), por possuírem Julgamento Extrovertido (Je) forte, teriam mais tendência a querer controlar o meio externo, criando estruturas, regras ou princípios universais a serem seguidos. Além disso, possuindo também Percepção Introvertida (Pi) forte, prefeririam extrair informações de seu próprio contato com o subconsciente e com uma postura reflexiva que filtre o mundo externo e dê a ele uma interpretação própria, para depois ser transformada em cooperação e princípios universais pelo Je. Isso tem sido preguiçosamente associado a um compromisso com organização, horários, métodos e “ser decisivo” que, ainda que esteja mais presente em Js que em Ps, não os define e causa graves erros. Por sua vez, tipos Perceptivos (P), por possuírem Percepção Extrovertida (Pe) forte, prefeririam explorar o mundo do objeto sem se preocupar primariamente com deixar nele estruturas ou controles, e, por isso, prefeririam a adaptabilidade. Isso seria reforçado por um Julgamento Introvertido (Ji) altamente individualista, que se reserva ao direito de fazer julgamentos e definir princípios totalmente subjetivos sobre o mundo, constantemente entrando em conflito com ele. Embora isso costume, de fato, gerar tipos mais relaxados, isso não é regra. Pela experiência empírica, todos os tipos que vivem o século XXI, um século que requer tanta produtividade e cansaço, são sujeitos à procrastinação e a não acompanhar tantas demandas. Por essas confusões, a dicotomia J x P, que já tem pouco apoio nas funções (afinal, introvertidos Julgadores dominantes são classificados de P e introvertidos perceptivos dominantes são classificados de J) costuma causar mais dúvidas que auxiliar. O número de Js que se consideram P e Ps que se consideram J é muito grande. Por tudo isso, o estudo das dicotomias deve ser visto com cautela.