entenda nossos motivos
A resposta para a pergunta-título deste texto passa por entender não só o que fazer com a teoria, mas também, e isso é muito importante, o que não fazer com ela. Isso se prova importante porque a tipologia ocupa um lugar médio no que seriam os níveis de análise do indivíduo. O nível mais específico analisa as nuanças do indivíduo, suas vivências pessoais e suas particularidades. O nível mais amplo analisa os grandes contextos ao redor dele, como o social, o geracional, entre outros. A tipologia tenta captar padrões de diferença entre pessoas que nem tanto coloca cada ser-humano como único, nem tanto coloca todos sujeitos aos mesmos padrões. Esse recorte permite notar alguns padrões intermediários que unem certas formas de pensar independente do contexto cultural e pessoal. Claro que, para isso, é preciso um grau de abstração que vem do conceito junguiano de arquétipo. Estudar tipologia requer fundamentalmente saber suas limitações.
Conhecidos os limites, a tipologia apresenta várias possibilidades de compreensão do mundo, tanto do interno quanto do externo. Essa é a grande utilidade da tipologia: uma jornada de conhecimento e autoconhecimento. Ou seja, ela ajuda a conhecer a si mesmo e ao outro. Por isso, deve-se ter que a tipologia é uma teoria altamente baseada na alteridade. Sobre isso, veja também outro texto, Tipologia e a construção do Outro, também disponível neste site, que faz uma reflexão sobre o lado negativo do que será exposto aqui.
As teorias de personalidade lidam, por definição, com as diferenças psicológicas entre as pessoas. Elas tentam entender por que alguém reage de uma forma a um estímulo, e outra pessoa reage de outra forma. Em teorias menos comportamentais, tenta-se elaborar sobre por que uma pessoa pensa de determinada forma, não necessariamente suas ações. Esse é o caso da tipologia junguiana, que apresenta um modelo psíquico aproximado dessas diferenças de pensamento entre as pessoas. Essas diferenças fazem sentido com o fato de que os seres-humanos, como animais eussociais, criaram uma organização social que se beneficia das diferenças e, inclusive, as encoraja. No entanto, a personalidade não é exclusiva dos seres-humanos ou dos animais eussociais. Diferenças individuais existem em vários animais, mas, obviamente, esse não é o foco da tipologia de personalidade, que faz propostas teóricas a partir de uma ideia da psique humana.
Ou seja, se se estudam as diferenças humanas, entender melhor nós mesmos (o nosso tipo) também passa por entender melhor os outros tipos. São os dois lados da mesma moeda. Na prática, significa que os dois principais benefícios da tipologia se retroalimentam. Por um lado, o objetivo da própria psicologia junguiana é ajudar no autoconhecimento que leva ao crescimento pessoal, à libertação do indivíduo de amarras do inconsciente e ao chamado processo de individuação. A tipologia de personalidade seria um auxiliar nisso: compreender suas funções ajuda a entender seus limites e capacidades, seus pontos cegos e seu inconsciente. Para isso, o ideal é não ver o tipo personalidade e suas funções como algo estático. Isso não significa mudar de tipo, bem longe disso. Sobre mudança de tipo, veja outro texto, Mudança e desenvolvimento do tipo junguiano: é possível? Significa que as funções têm graus diferentes de presença no indivíduo e se manifestam de forma diferente ao longo do tempo. A função mais estática do indivíduo é a inferior: ela é inerte por não poder ser desenvolvida. Mesmo assim, ela também se manifesta de formas diferentes ao longo da vida, e reconhecer essas formas ajuda no processo de aceitação de si e das próprias limitações, bem como no importantíssimo processo de contato com o inconsciente. Justamente por ser estática e problemática de formas diferentes, a função inferior tem a capacidade de seguir ensinando o indivíduo ao longo de sua vida, de formas diferentes, e faz parte do progresso entendê-la minimamente, tentando-se também não ceder aos seus impulsos. As funções do meio, a auxiliar e a terciária, têm mais capacidade de serem trabalhadas, e, se o forem, proporcionam mais equilíbrio e ferramentas ao indivíduo, na sua interação com o mundo e consigo mesmo. Embora não tão desenvolvidas ou diferenciadas como a dominante, elas podem oferecer grandes auxílios e lições interessantes para a pessoa. E a dominante, o carro-chefe do indivíduo, também pode e deve ser trabalhada para alcançar todo o seu potencial e não se tornar refém da inferior, ou de um modo único de pensar e agir.
Resumindo, um dos principais usos da tipologia, e o mais óbvio, está no autoconhecimento. Existem muitas formas de trabalhar o autoconhecimento, mas de qualquer forma é um trabalho constante que envolve tanto o entendimento de si quanto a mudança de ações e posturas. Por esse motivo, ele é constante e contínuo, embora não linear. O trabalho de si requer esforços e não é simples, nem tampouco exclusivo da tipologia. A tipologia não substitui um acompanhamento psicológico, por exemplo, ou outros tipos de trabalho de autoconhecimento. Ela funciona como uma ferramenta para desvendar uma leitura específica de como cada um funciona. Dito isso, essa ferramenta é extremamente útil para isso. Ela traz um grau de sistematização bastante acessível inclusive para pessoas fora da área de psicologia, o que favorece o autoconhecimento individual caso seja feito do jeito certo (tentativas de simplificar em demasia a tipologia, por exemplo, ao invés de ajudar, atrapalham o processo). Ao mesmo tempo, os conceitos são bastante ricos, e explorá-los até entender o próprio tipo costuma trazer inúmeros insights e pensamentos sobre os próprios pontos fortes e fraquezas. A tipologia junguiana, até mesmo por ser dicotômica, encara as fraquezas e as forças como dois lados da mesma moeda, e como algo presente em todas as pessoas. E é exatamente por isso que ela pode ajudar a enriquecer o entendimento de si e os principais pontos de trabalho.
Por outro lado, se a tipologia estuda diferenças, ela também tem a utilidade, frequentemente esquecida, de se entender o outro. Conforme entendemos as diferenças e a justificativa teórica para que todas as pessoas tenham acesso a vantagens e defeitos, a tipologia é um útil recurso de criação de empatia. Uma base para se explicar como o outro funciona deve sempre ser usada para melhorar as relações humanas, e não para inferiorizar o outro ou reduzi-lo a grupos e determinismos. Se a tipologia é uma ferramenta de trabalho pessoal, ela também pode ajudar na construção conjunta de relações, na adaptação entre uns e outros e em uma melhor compreensão de como ou por que cada pessoa faz o que faz e pensa o que pensa. Ou seja, a tipologia aumenta o grau de aceitação de certas ações e pode, se usada corretamente, facilitar a forma de se colocar no lugar no outro. É importante lembrar, no entanto, que a tipologia explica, mas não justifica certas ações. Ações inaceitáveis continuam sendo inaceitáveis, lógicas ruins continuam sendo ruins, entre outras. Mesmo assim, saber de onde as pessoas partem pode ajudar no convívio e nos vínculos humanos.
Nesse aspecto, é necessário entender a tipologia como um todo, e todos os tipos, para ser possível olhar e identificar as funções nas pessoas, e como as funções de um dialogam com as funções de outro. Ou seja, novamente, a tipologia ajuda num trabalho que já deve ser feito sem ela. Afinal, é ideal que a compreensão mútua se espalhe pela sociedade e que as diferentes relações, familiares, de amizade, trabalho ou de relacionamento, tenham mais ferramentas para trabalharem-se. Sobre esse tema, veja outro texto, Tipologia em relações e relacionamentos. Há que se ter em mente que a tipologia deve ser sempre uma ferramenta de trabalho, nunca de fatalismo ou estigma.
Além desses dois usos mais práticos, o conhecimento de si e do outro, existe também outra forma de se usar a tipologia, também relacionada ao entendimento do mundo. Aprender a tipologia é aprender um novo vocabulário. É preciso aprender os significados das palavras intuição, extroversão, função racional, concreto e abstrato, dentro da perspectiva junguiana. Todo novo vocabulário fornece mais oportunidades de conexões e interpretações da realidade, não só das pessoas com as quais cada um convive. Isso inclui, claro, personagens de obras de entretenimento, ou até mesmo as próprias obras, bem como a realidade em si. Um dos principais usos desse prisma novo de observação do mundo é a aplicação para análise e classificação daqueles que fazem o ser-humano chorar, vibrar e criar empatia: personagens de filmes, livros, séries, animações e histórias em quadrinhos. Como produtos humanos, os personagens refletem os arquétipos presentes no inconsciente coletivo de seus criadores. Em uma leitura menos junguiana, é compreensível, de qualquer forma, que os autores baseiem suas criações naquilo que viveram e com que conviveram. Portanto, seria impossível, ou muito difícil, produzir um personagem que não tivesse alguma base em pessoas reais, que reproduzem padrões de personalidade que a tipologia tenta entender. Portanto, por mais que imperfeito, é totalmente possível usar a tipologia para encontrar os tipos de personagens, discutir sobre eles e usar isso para enriquecer o entendimento de personagens e obras. Alguns personagens representam tão bem um arquétipo que seu tipo é gritante e até servem de exemplo para se explicar algumas facetas das funções. Isso também consegue deixar as pessoas mais próximas de seus personagens e obras favoritos, mas para isso elas precisam livrar-se do apego de ter o mesmo tipo desses personagens, ou um parecido, e aprenderem a apreciar diferentes personagens com diferentes tipos, o que ensina a apreciar as diferenças humanas. Assim, um novo vocabulário permite uma nova forma de interpretar o mundo.
Por outro lado, também é muito importante entender o que não fazer com a tipologia de personalidade. Porque a teoria tem seus limites, seus usos também têm. No caso, será tratado do uso equivocado da tipologia em suas formas individual e coletiva. Nos dois casos, o pior uso possível é para prever comportamentos e definir posturas a priori doo contato com a pessoa. Na forma coletiva, o uso pode chegar a tentativas de seleção de pessoas por tipo junguiano. Infelizmente, existem empresas, sem consciência tanto da teoria quanto de seus usos, que incluem testes tipológicos de MBTI ou NERIS em seus processos seletivos, o que é um erro. Deixando bem claro, a tipologia não deve ser usada, em hipótese nenhuma, para seleção de vagas em qualquer lugar. A começar por motivos práticos, testes inspirados em tipologia junguiana são incapazes de indicar o tipo verdadeiros e são propensos a graves distorções. Ainda mais, são facilmente manipuláveis, o que torna usá-los em processos seletivos ineficiente até mesmo para o recrutador, que pode esperar escolher certas personalidades, mas escolhe apenas pessoas que sabem manipular testes cujos resultados são pífios em termos de utilidade. O tipo junguiano não define habilidades, capacidades e muito menos comportamentos. Ele indica tendências gerais de pensamento e visão de mundo que podem refletir comportamentos muito diferentes entre os membros do mesmo tipo. Para piorar, a existência de empresas que usam tipologia de personalidade para seleção indica ignorar a existência de formas diferentes de se pensar e como elas podem contribuir de formas diferentes a uma mesma vaga e a uma equipe. Cria-se a imagem de que existe um tipo melhor ou ideal para o mundo empresarial ou para certa vaga, o que restringe a própria criatividade e a capacidade de diálogo entre pessoas diferentes, ou o fato de que várias pessoas podem chegar a resultados similares por estratégias diferentes. Isso contribui para a construção de estigmas com certos tipos e a premissa falsa de que existem hierarquias entre os tipos. Qualquer processo seletivo que use tipologia junguiana deveria ser desacreditado. Ainda mais se for usado um teste genérico e manipulável de internet.
O uso organizacional da tipologia não é demonizado, apenas o uso para seleção ou discriminação e previsão de comportamentos. Como dito anteriormente, como o conhecimento dos tipos pode ajudar a construir relações mais saudáveis, isso também pode valer para o ambiente empresarial, se feito da forma correta. Ou seja, não antes de a pessoa entrar, mas com ela já inserida no local de trabalho, para que uns e outros entendam suas relações melhor. Ela não deve ser usada para delegação de funções, ao menos não de forma crítica (sem a consulta e a conversa com as pessoas reais), mas sim para compreensão e articulação interpessoal.
O mesmo pode-se dizer no campo individual. Há pessoas que usam a tipologia para estigmatizar grupos e tipos, ou mesmo rejeitar aproximar-se de pessoas antes de conhecê-las, o que deveria ser o oposto do motivo real da tipologia. Pessoas que rejeitam interagir com outras por seu tipo de personalidade se fecham em ilusões e estigmatizações que certamente serão maléficas para elas mesmas. Muitas usam a tipologia apenas como desculpa para preconceitos anteriores, ou criam novos preconceitos com a tipologia. Obviamente, ninguém é obrigado a gostar de ninguém. Ainda mais, é sempre notável, sim, uma preferência tipológica, isso é totalmente normal: cada pessoa costuma ter, sim, tendência a gostar da forma de pensar de certos tipos e não de outros. Não existe nada errado em identificar esse padrão, mas ele não pode nunca ser usado para cancelar uma interação antes mesmo de ela acontecer. Cada indivíduo é um só e é impossível definir se uma pessoa vai ou não gostar de outra com base em suas preferências de tipo. Isso piora quando as pessoas não identificam corretamente o tipo e usam tipagens incorretas para justificar ainda mais preconceitos. Isso costuma acontecer muito com os estigmas que ESTJ, ESFJ, ESFP e ESTP sofrem, principalmente. Ou seja, as pessoas desses tipos que são interessantes ou divertidas são erroneamente alocadas em outro tipo exatamente porque existe, a priori, uma opinião errônea de que esses tipos serão sempre chatos, o que gera um destrutivo viés de confirmação: a pessoa usa erros para validar as opiniões erradas e continuar considerando que está certa.
Por fim, um último problema pessoal do uso errôneo da tipologia está na recusa ao crescimento pessoal. A tipologia junguiana tem um modelo dinâmico (em que as funções podem se manifestar de forma mais ou menos favorável no indivíduo) para favorecer o crescimento pessoal, o trabalho de si e a autoconsciência. Aceitar as próprias dificuldades não significa usá-las como desculpa para causar mal a outras pessoas ou a si mesmo. Até a função inferior, que é incapaz de ser desenvolvida a um nível consciente e criativo, não deve ser lançada como carta branca para seu mal uso. Mesmo a inferior pode ter manifestações mais ou menos destrutivas para o indivíduo e aqueles à sua volta. Personalidade nenhuma é justificativa para ações. Todos devem arcar com seus comportamentos, não as letras de seus tipos.
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