Vivemos em sociedade e criamos vínculos. Como a tipologia pode falar sobre isso?
Como o estudo da personalidade estuda as diferenças entre as pessoas, ele inevitavelmente gera o interesse de entender não apenas a pessoa como indivíduo, mas também o indivíduo em sua relação com outras pessoas. Dúvidas e especulações sobre as relações entre os tipos surgem facilmente aqui e acolá. E, claro, como o campo dos relacionamentos românticos é ainda mais sensível para muitas pessoas, é para ele que a maioria dos olhos se vira. Existem vários apontamentos importantes a serem feitos acerca das funções, dos tipos e de como isso influenciaria as relações e a forma como cada um constrói esses vínculos.
Para exemplificar, começa-se pelos relacionamentos amorosos. Como esse costuma ser um tópico sensível na sociedade atual, e os relacionamentos amorosos ocupam um lugar de destaque na cultura, muitas pessoas procuram a tipologia especificamente para saber mais sobre seus relacionamentos ou futuros relacionamentos, ou para perguntar sobre previsões de compatibilidade e “casais ideais”. Não por menos, diferentes autores que pensaram a problemática dos tipos também tentaram fazer exercícios de pensar “casais ideais”, a partir de sua própria visão sobre relacionamentos e do que eles precisam. A maioria dos autores parte da noção de que alguma complementariedade opositiva é importante para se pensar o “casal ideal”. Até porque as premissas junguianas são de busca de equilíbrio psíquico, esse equilíbrio viria do aprendizado que as complementariedades trariam. No entanto, a primeira prova de que esse raciocínio pode ser exagerado é a de que cada autor chegou a uma conclusão diferente acerca de qual tipo seria de fato o melhor complementar possível para o relacionamento. O que houve foi muito mais uma especulação teórica que levou pouco em conta o caso concreto na tentativa de decidir, por ideias sobre equilíbrio e entendimento, qual seria o “par perfeito”. Se isso for juntado ao fato de que a tipologia de personalidade é pouco empírica e que cada um desses autores entendeu de forma diferente os tipos, o que se tem é um conjunto pouco conexo de ideias sem significativa verificação empírica. Se a teoria dos tipos de personalidade já é algo abstrato, que não prevê o comportamento de um indivíduo, a tentativa de prever os comportamentos ou afeições entre dois tipos é ainda mais imprecisa e especulativa, de forma puramente teórica.
A verdade é que essa especulação teórica sobre pares ideais é problemática em si, e talvez parta de uma perspectiva em que as oportunidades de aprendizado complementar garantiriam ou facilitariam que um relacionamento fosse bem-sucedido, mas não é o caso. Os motivos de relacionamentos “darem certo” e de pessoas “serem compatíveis” são muito maiores que uma teoria abstrata sobre padrões de pensamento. Até porque ela parte de um pressuposto problemático por si só, a ideia de que casais são “naturalmente compatíveis”. Acontece que, para se perguntar “existem combinações destinadas a fracassar ou a dar certo, em primeiro lugar é preciso se perguntar “o que significa um relacionamento dar certo?”. E a verdade é que não há resposta para isso. Um relacionamento que durou 20 bons anos, mas que se desgastou e terminou em uma briga violenta e ódio mútuo deu certo ou fracassou? Ou, de outra forma, um relacionamento que durou apenas um mês, mas que marcou profundamente as duas pessoas e elas seguiram bem umas com as outras e consigo mesmas depois dele deu certo ou fracassou? Relacionamentos são processos complexos demais, que variam ao longo do tempo, para serem reduzidos à ideia de sucesso e fracasso, e, consequentemente, à ideia de compatibilidade. O principal objetivo de um relacionamento é o prazer e a felicidade mútuas ou o crescimento pessoal dos indivíduos? Existem envolvimentos amorosos de formatos e propostas muito diferentes para serem considerados, de forma que o conceito de compatibilidade, ou pior, o de par perfeito, simplesmente não tem sentido dentro da tipologia de personalidade. Além do mais, como relacionamentos mudam ao longo do tempo, eles também têm fases muito diferentes entre si. Afinal, o término deveria ser contado como parte do relacionamento para decidir se ele foi bom ou ruim? A duração importa? Tudo isso varia muito mais de indivíduo para indivíduo que de tipo para tipo.
A resposta para compatibilidade entre tipos é, portanto, que ela não existe. Relacionamentos funcionam (não exatamente dando certo ou errado) por um misto complexo de atração, conexão e esforço. E isso depende dos indivíduos envolvidos e de sua vontade, consciente ou inconsciente, de querer que algo vá dando certo pelo tempo que for possível, da forma que for vontade das partes. Não significa que “basta ter vontade”, mas ter vontade é essencial. Muito mais complexa que o mito da compatibilidade por personalidades abstratas, a verdade requer esforço, e ele se encontra em indivíduos, não tipos. Se uma pessoa quer encontrar um relacionamento saudável, duradouro e profícuo, deve procurar por pessoas: as pessoas que lhe atraem e que estão dispostas a construir algo que vá além dos dois.
Contudo, existem algumas coisas que a tipologia pode comentar sobre dinâmicas de relacionamento. Se não de compatibilidade, a tipologia junguiana parece certamente capaz de falar de atração. São inúmeros os relatos e observações de pessoas com padrões de interesse e atração que dialogam com as funções cognitivas. Porém, é interessante notar que não existe tanto um grande padrão de atração que determine quais tipos se atraem por quais, mas sim um padrão mais ou menos individual e variante, embora claro e identificável. Isso significa que, embora as pessoas pareçam ter preferências de atração romântica por determinados tipos, não é tão fácil criar uma lei universal sobre atração entre tipos, apenas entre pessoas devido a seus tipos. Portanto, cabe aqui estudar um pouco diferentes tipos de atração a partir das funções cognitivas. Mas, para isso, começa-se falando das análises, em tipologia, sobre atração pela diferença e pela falta.
Segundo Marie-Louise von Franz, haveria uma tendência de atração por pessoas com tipos que representassem aquilo que é faltoso ou inconsciente no indivíduo, ou seja, suas funções baixas. As pessoas se atrairiam de forma ligeiramente projetiva pelos campos frágeis de si mesmos, onde abundariam arquétipos junguianos de oposição como a anima, o animus e a sombra. A anima e o animus, que seriam a presença feminina e masculina nas psiques de cada um, estariam mais associadas às funções auxiliar e terciária, enquanto a sombra, aspecto inconsciente, à função inferior. Para mais comentários sobre como a tipologia junguiana dialoga com as questões de gênero, consulte o texto Tipologia Junguiana e gênero em diferentes dimensões. Lá, serão discutidas as relações propostas entre as funções e papéis arquetípicos. do feminino e do masculino. Quando funções muito masculinas ou muito femininas estão em posição inferior, é possível que anima e animus causem conflito nas pessoas. Essas funções, altas em outras pessoas, poderiam, portanto, exibir um papel sedutor na medida em que, na busca de um suposto equilíbrio ou complementariedade, o inconsciente direcionasse o indivíduo para relações que satisfizessem suas faltas nas funções baixas, especialmente a terciária e, mais especialmente ainda, a inferior. Além disso, é comum que os padrões de atração associados às funções não sejam refletidos diretamente nos tipos das pessoas, mas sim em comportamentos ou situações e papéis sociais que atraem a pessoa, ou mesmo a especulações sobre o que poderia acontecer. Esse padrão realmente é muito forte em um número grande de pessoas, mas não é único, conta a experiência dos autores deste site. Embora a vasta maioria de membros da comunidade apresente dinâmicas de atração associadas às funções altas e baixas, parece haver outros tipos de atração dignos de nota. Dessa forma, passar-se-á brevemente por uma “tipologia da atração por funções” antes de se continuar o raciocínio do texto.
Atração pela inferior: um bom número de pessoas tem no seu ponto fraco psicológico também o ponto que exerce mais força atrativa. Esse tipo de atração é mais “clássico” no pensamento tipológico exatamente porque, como a psicologia analítica parte da ideia de equilíbrio psíquico, como dito, a psique (representada pelas funções de um indivíduo), iria atrás de algum tipo de compensação ou ensinamento daquilo que lhe é mais vulnerável. A função inferior pode ter esse apelo sedutor quando o indivíduo reconhece sua sensibilidade na área e, ao invés de projetá-la negativamente nos outros, projeta a partir da atração. Embora haja um fator projetivo nessa tendência de atração, ele não necessariamente é ruim – até porque a dinâmica de atração não lida com certo e errado. Ela apenas é.
Exemplo: Fe-dominantes (ExFJ) atraindo-se pessoas com Pensamento Introvertido (Ti) alto (xxTP).
Atração pela terciária: também no bojo da sedução ligada à vulnerabilidade das funções baixas, a função terciária, infantilizada mas presente, pode oferecer algum tipo de diálogo ligeiramente mais consciente para o indivíduo atraído que a função inferior, ainda que, por outro lado, perdendo um pouco do fator misterioso que a inferior pode oferecer. Associada à anima e ao animus por von Franz, ela poderia se apresentar como um fator masculino ou feminino diante das pessoas e, a partir disso, gerar essa atração a partir de algo que existe no indivíduo, mas sabe que pode ser mais explorado.
Exemplo: Te-auxiliares (IxTJ) atraindo-se por pessoas com Sentimento Introvertido (Fi) alto (xxFP).
Atração pelas funções altas (dominante e auxiliar): enquanto a atração pelas funções baixas pode ser vinculada a um comportamento projetivo, a atração pelas funções altas poderia ser vista com um componente narcísico. Isso prova que não existem atrações por tipo que sejam mais saudáveis ou recomendáveis, e se trata apenas de fenômenos diferentes e os motivos que podem levar as pessoas a se atraírem por uma ou outra função. Especialmente no caso da atração pela dominante, o indivíduo provavelmente priorizaria algum tipo de tentativa de ser compreendido na semelhança, além do fator possivelmente narcísico. No caso da função auxiliar, há um componente de diálogo, de incentivo a olhar para o ambiente interno ou externo, a depender do indivíduo, dentro de um ambiente mais confortável. Introvertidos atraídos por pessoas com sua função auxiliar forte (particularmente dominante) podem querer mais desse ponto de diálogo com o mundo objetivo, e extrovertidos com o mundo subjetivo.
Exemplo: ISFP atraindo-se por pessoas com Sensação Extrovertida (Se — xSxP), Sentimento Introvertido (Fi — xxFP) altos, ou os dois (xSFP).
Atração pelas funções altas em orientação oposta: aqui, pode existir um componente narcísico similar ao das funções altas, mas com certos pontos de diferença. Embora a rigor a função seja a mesma (tanto Ti quanto Te são a função Pensamento, mas com orientações diferentes, por exemplo), o foco no objeto ou no sujeito faz com que elas falem uma com a outra de lugares diferentes. É comum que a versão extrovertida e a introvertida atraiam-se a si mesmas por mostrarem um mundo novo a respeito das mesmas coisas que são vistas. As funções extrovertidas tendem a buscar o compartilhamento do mundo de foco com outras pessoas, o que pode ser bem recebido pela função introvertida, se ela estiver mais passiva. Algo semelhante acontece com as funções introvertidas apresentando desdobramentos subjetivos dos temas apreciados pela função extrovertida.
Exemplo: ESTJ atraindo-se por pessoas com Sensação Extrovertida (Se — xSxP), Pensamento Introvertido (Ti — xxTP) altos, ou os dois (xSTP).
Atração pelas funções baixas em orientação oposta: nesse padrão de atração, é comum que haja a faísca de um mundo que, ao mesmo tempo em que é alienígena, possui enormes semelhanças nas conclusões e comportamentos. Essas funções possuem a mesma natureza uma da outra: por exemplo, tanto Ni quanto Si são funções de percepção introvertida. Isso significa que o panorama geral e as principais tendências de comportamento podem ser semelhantes, mas que os detalhes do funcionamento de cada um são bastante estrangeiros.
Exemplo: INFJ atraindo-se por pessoas com Pensamento Extrovertido (Te — xxTJ), Sensação Introvertida (Si — xSxJ), altos, ou os dois (xSTJ).
Como se pode ver, além de a atração poder seguir vários padrões, eles dialogam entre si. Por isso, para se identificarem os padrões, é preciso ter uma boa experiência com diferentes pessoas e o grau de atração que causaram no indivíduo, além da tipagem correta dessas pessoas. Afina, uma ISFJ que se percebe atraída por um ESTP teria mais propensão à atração pela função dominante em orientação oposta (Si x Se) ou pela função terciária (Ti), ou pelas duas? Essa resposta só poderia vir se a ISFJ em questão comparasse essa atração com outras pelas quais passou ao longo da vida, para entender quais tipos e funções tendem a chamar-lhe mais atenção. Mas, por outro lado, de que serve saber por quais funções uma pessoa tem mais tendência a se atrair?
Além das motivações básicas do interesse por tipologia, ou seja, a mera vontade de se ter um prisma de interpretação do mundo, identificar padrões sobre si mesmo significa ganhar poder sobre eles, inclusive caso a pessoa queira tentar abdicá-los. Mas, geralmente, tentar reprimir padrões de atração é nadar contra uma correnteza imparável. Reconhecer esses padrões de atração tem mais utilidade para que a pessoa saiba diferenciar atração de conexão e potencialidade, caso queira. Há muitas pessoas que, ao não distinguir as duas coisas, movem-se sempre em direção ao núcleo de maior atração, mesmo que aquilo não vá gerar efeitos tão positivos, porque nem todo vínculo de atração gera um relacionamento que a pessoa quer ter. Reconhecer os padrões e diferenciar atração de conexão pode dar mais capacidade para qualquer pessoa decidir até onde vai levar certo vínculo ou potencialidade. Conhecer as tendências de atração também serve para se tentar ampliá-las: saber o que chama mais atenção pode possibilitar à pessoa buscar ver como outras pessoas ou tipos também têm seu brilho. Mesmo que isso não leve a novas atrações, certamente ajuda a aumentar as admirações e os vínculos que se pode construir.
Por fim, é importante falar sobre o que liga tanto relacionamentos amorosos quanto não-amorosos em termos de tipologia. Até aqui, debruçou-se nos relacionamentos amorosos e nos problemas de compatibilidade, casal ideal e atração romântica. Em graus diferentes, os ensinamentos anteriores podem ser usados para se compreender e lidar com as relações gerais de uma pessoa. Sobre isso, há duas coisas que comentar: uma sobre preferências de tipo e outra sobre previsão e auxílio para relações.
No caso da preferência, a exposição sobre atração mostra como, mesmo que de forma imprevisível, é normal que se haja tendências de inclinação para um ou outro tipo. Na convivência também, a experiência aponta que é possível que um indivíduo tenha preferências sobre uma função ou outra. No entanto, é importantíssimo frisar que olhar indivíduos, não tipos, é a forma correta de se lidar com esses padrões. Ainda que seja normal ter um padrão de interação mais positivo com determinado tipo que com outro, usar isso para gerar preconceito ou romper e piorar relações por questões de tipo não é apenas nocivo para a própria pessoa, como também para as pessoas envolvidas e inadmissível. Se por nenhum outro motivo, pelo menos porque sempre é possível que haja uma pessoa de um tipo “desgostado” que seja muito positiva na vida do indivíduo, de formas inesperadas. Todo tipo tem exemplos mais saudáveis ou menos saudáveis, e se apoiar em experiências ruins para se fechar para um tipo significa usar uma teoria imprecisa e abstrata para ditar decisões castrativas sobre a própria vida. Talvez ainda pior, é bem comum que as pessoas que cultivam preconceito com relação a tipos inteiros tenham o costume de divulgar isso sob o disfarce da opinião e formar opiniões de outras pessoas ainda iniciantes na tipologia, que passam a ser influenciadas por esse viés. Esse julgamento de tipos inteiros ainda costuma levar a uma compreensão ruim da própria teoria e de si mesmo. Na medida em que uma pessoa define um tipo como “ruim” ou passa a sentir que não gosta das pessoas daquele tipo, ela também passa a “tirar do tipo” os exemplos de que gosta, para alocar em outros, de forma errônea, apenas para validar seu incômodo, alimentando um ciclo vicioso que impede sua real compreensão dos tipos para além de opiniões pessoais tortas. A solução para isso é, ao mesmo tempo em que se reconhece sua determinada preferência por uma ou outra manifestação de algumas funções, buscar-se ver as pessoas como pessoas, antes de vê-las como tipos, e apreciá-las como pessoas. As relações criadas dessa forma costumam ser mais orgânicas e mais frutíferas, além de melhorar a própria compreensão tipológica, pois diminui o preconceito e o viés.
Já no caso do auxílio para relações, a tipologia também pode ter algo a acrescentar. A tipologia não tem capacidade preditiva de dizer quais darão certo ou errado, mas pode indicar quais serão os principais pontos de atrito ou diálogo de duas pessoas, considerando-se que outros fatores importantes (socioculturais, por exemplo) permaneçam os mesmos. Ou seja, a tipologia pode servir para que os indivíduos envolvidos se entendam e trabalhem nos pontos de discordância com mais uma ferramenta de entendimento de dinâmica. A função inferior é um bom indício dos pontos em que uma pessoa pode ter dificuldade ou gerar atrito. Mesmo pessoas com a mesma inferior (e, consequentemente, a mesma dominante), podem tê-la direcionada para coisas diferentes e gerar muitos atritos a partir disso (ou pior, direcionada para a mesma coisa). Como o estudo da personalidade é o estudo das diferenças psicológicas, e as interações sociais e relacionais evidenciam essas diferenças, as grandes dinâmicas dentro de uma relação, qualquer que seja ela, podem ter influência tipológica. Para a análise, no entanto, é importante considerar sempre os fatores antes de dizer que eles são causados pela tipologia. Existe uma grande tendência, discutida em Tipologia e a construção do outro, que faz as pessoas colocarem seus chefes e familiares como sendo de determinados tipos apenas porque enxergam o tipo a partir daquela relação, sem o distanciamento necessário para enxergar as pessoas como tendo vidas e personalidades para além daquela relação. Por isso, a tipologia só pode ajudar uma relação quando os tipos foram bem definidos e a relação não foi usada como única fonte para definição dos tipos em questão. No entanto, depois que os tipos foram definidos, muitas análises podem florescer e favorecer a relação das pessoas: não como anúncio de um destino inescapável, mas como construção contínua, crescimento conjunto e adaptação interpessoal. As relações se constroem como processos. Mesmo a personalidade mantendo-se a mesma, o estudo dela deve servir para favorecer esse processo. Notados os pontos de atrito, pode-se ver o quanto eles podem mudar.
Conheça os outros conteúdos relacionados