entendendo a si mesmo e ao outro
Existe algo quase mágico na tipologia que atrai tantas pessoas a estudarem. Por que eu penso nas coisas que penso? Por que sou diferente do meu amigo? Por que brigo tanto com meus pais? Tudo isso lida com temas muito sensíveis para o ser humano: o “eu” e o “outro”. Estudamos tipologia para se entender melhor essas duas coisas. Só que na diferenciação entre essas coisas escondem-se vários perigos. O mundo do Outro é envolto em mistério e sombras, disso todos sabemos. O Outro é uma entidade imprevisível, porque age contra a nossa vontade, e pensa de formas quase alienígenas. O Outro pode ser fonte de inseguranças, ameaças e traições, mas também de vínculo, conexão e prazer. Enquanto não sabemos, o Outro é repleto de sombras.
Acontece que, na verdade, o Eu também é quase tão misterioso quanto o Outro. Em nós mesmos também há sombras, atitudes imprevisíveis e recantos que não conhecemos bem. No entanto, é mais fácil imaginar controle e domínio sobre nós mesmos que sobre os outros. No “eu”, nós construímos um senso de si, uma identidade, em que colocamos aquilo que reconhecemos como nosso. Tudo o que é da identidade é o que aceitamos no Eu, seja bom ou ruim. Existem vários fatores que influenciam na nossa criação da identidade. O ser-humano tem vontade tanto do sentimento de pertença (a um grupo, a uma família ou clã, a uma nação ou religião, ou mesmo a algo bobo como um grupo de WhatsApp dos amigos) e também o sentimento de separação, de ser um indivíduo único e diferenciado por suas vivências e memórias, ideias próprias e peculiaridades. Na tipologia, esses dois fatores da identidade agem: no começo, nós queremos nos diferenciar, entender o que faz com que sejamos nós mesmos, e enxergamos os tipos diferentes de nós como os Outros. Mas isso também leva ao sentimento de pertença: passamos a nos identificar como parte de um grupo composto pelo nosso tipo, ou por agrupamentos de tipos. Se usamos a tipologia para nos conhecermos, isso inevitavelmente passa pelo delicado tema da identidade: por aquilo que definimos como sendo nós e por aquilo que rejeitamos como não sendo nós. Se nós escondemos muito das nossas sombras e mistérios, talvez nossa identidade não corresponda muito ao que nós somos de fato.
Porque a tipologia lida muito fortemente com a identidade, ela é tão perigosa: corremos o risco de querer nos associar apenas aos tipos que são mais confortáveis para a nossa identidade, sem explorar o que os tipos significam. Sobre esse tema da autoidentificação errônea, veja o texto Identificação errada do tipo: mistype e como evitar. Além disso, existe o fenômeno muito comum de descarregarmos na tipologia as concepções erradas, os preconceitos e os estigmas que já colocamos do lado de fora, no Outro. É nesse aspecto que se pode dizer que a tipologia corre o risco de levar à construção do Outro. O Outro é construído na medida em que construímos ilusões ou forçamos imagens ruins ou distorcidas sobre algo que estaria fora de nós, enquanto aproveitamos isso para manter opiniões confortáveis sobre a nossa identidade. O Outro é construído para que nós possamos melhor acomodar o Eu e o Nós. Para que tenhamos um senso de identidade confortável e um sentimento de pertença igualmente confortável. Claro, a tipologia não deve ser usada para isso. É uma grave ofensa às pessoas e à teoria usá-la para distorcer a alteridade e criar uma autoimagem confortável. Por causa disso, este texto analisará com calma vários fenômenos que levam a essa construção de um “Outro” ilusório, com o qual ninguém ou quase ninguém quer se identificar. Um Outro feito apenas para os caprichos do Eu.
Começando de um caso comum, existe uma primeira grande ruptura que nós, como indivíduos, tentamos fazer para afirmar nossa identidade. A adolescência é uma fase da vida em que, na busca de afirmar quem nós somos, costumamos nos rebelar contra um Outro que se coloca como diferente de nós. Geralmente, esse Outro são nossos pais, os mesmos que na infância eram quase indistintos de nós. A ruptura do vínculo com os pais é um fenômeno muito estudado na psicologia. Essa ruptura é importante para o desenvolvimento saudável do indivíduo, mas não significa que ela é sempre feita da melhor forma. Além disso, a necessidade visceral que o adolescente tem de se colocar diferente de seus pais faz com que ele tente usar de quaisquer artifícios para garantir que não é igual a eles. Infelizmente, a tipologia costuma ser uma dessas ferramentas, e esse é um dos exemplos mais explícitos do fenômeno de construção do Outro. A geração jovem tradicionalmente se vê como mais livre, cabeça aberta, transgressora, criativa, única e verdadeira. Os pais são sempre colocados como autoritários, conservadores, bitolados, cabeça-dura, “chatos” em geral. Para um adolescente ou jovem que está começando a entrar na tipologia junguiana, é muito fácil querer se diferenciar dos seus pais dando a eles tipos que seriam de pessoas chatas, autoritárias, conservadoras e “caretas”. Infelizmente, existe um número exageradamente grande de vídeos, memes e até textos pretensamente sérios que associam a Sensação Introvertida (Si) e os tipos com Si forte (xSxJ) a esse estereótipo de forma totalmente acrítica. Essa associação tem uma motivação quase política: delegar aos pais e aos mais velhos esses tipos, enquanto a nova geração se sente confortável com tipos mais “interessantes”. Em casos mais graves de construção do Outro, a pessoa pode realmente passar a ver todos os seus amigos, ídolos ou pessoas admiradas como de determinados tipos (geralmente os tipos erroneamente associados à criatividade), enquanto delega sempre àqueles de que não gosta os tipos de que não gosta. É muito comum, por exemplo encontrar pessoas que identificam a si mesmas, a seus irmãos e amigos, como “intuitivas”, enquanto seus pais são “sensoriais”, porque, segundo os estereótipos geracionais, essa divisão representaria as pessoas interessantes, que pensam por si próprias, que têm criatividade e rompem tradições, daquelas conservadoras e tradicionais. Quando se estuda tipologia de verdade, vê-se o erro gravíssimo nessas concepções. Para piorar, existe outra tendência gravíssima de construção do Outro que a imputação de certos tipos aos pais evidencia. É frequente que as pessoas percebam tarde demais que seus pais têm vidas, gostos e interesses para além do cuidado com os filhos. Muitas vezes, a pessoa se coloca no centro de todas as análises de tipo: ela define um tipo para si e usa suas relações com os outros para definir os tipos delas. No caso dos pais, a relação com os filhos sempre segue certos padrões. Aquele que usa a si mesmo para definir o tipo dos pais tende a acreditar, inconscientemente, que eles existem apenas em nome do próprio filho, e isso aumenta essa imagem “chata” e “sem vida” que muitos criam das pessoas mais velhas. Se o filho se sente controlado pelos pais, ele corre o risco de imputar a eles um tipo autoritário sem considerar o todo da personalidade, usando como base apenas sua opinião de uma relação que necessariamente tem um pouco de autoridade.
A construção do Outro nega a ele sua própria narrativa porque cria uma narrativa para ele baseada na opinião pessoal de quem se vê como o centro das identidades. Quando isso acontece repetidas vezes por muitas pessoas, essa narrativa passa a ser vista como verdade e muitas distorções surgem. No exemplo dos pais, a coisa retroalimenta-se: os pais são vistos como xSxJ porque seriam autoritários, fechados e tradicionais, e os tipos xSxJ são vistos como autoritários, fechados e tradicionais porque são os tipos dos pais. Um estudo correto desses tipos e da função Si prova o quão equivocado está esse raciocínio. Mas ele mostra como certos tipos vão sendo exagerados e distanciados do “Eu” na medida em que vão sendo construídos como Outro. Passa a ser cada vez mais confortável para a maioria das pessoas identificar-se com tipos intuitivos porque os tipos sensoriais são constantemente exagerados ao redor de estereótipos que, quando não negativos, pelo menos são tão altos que chegam a fazer com que quase ninguém queira identificar-se. Claro, isso faz com que mais e mais pessoas continuem identificando-se com tipos que recebem muitas pessoas, tornando os tipos do “Nós” genéricos a ponto de receber qualquer um que queira identificar-se. Como quase ninguém se identifica com os “tipos Outros”, também existe pouca gente para combater esses estereótipos que se alimentam. O Outro passa a ser construído para que a própria narrativa fale por ele. A identidade confortável faz com que o Outro perca a voz. O Eu “fala” pelo Outro.
Esse fenômeno de exagero ganha um contorno curioso ao se tratar da visão que se cria dos tipos com Sentimento Extrovertido (Fe) alto (xxFJ), especialmente os tipos com Fe-dominante (ExFJ). O Sentimento Extrovertido é uma função que extrai seu arcabouço valorativo do mundo externo, o que frequentemente significa as pessoas e grupos com os quais ele interage. Por conta disso, a função e os tipos que a têm como dominante são, de forma exagerada, mas não equivocada, tratados como voltados necessariamente às pessoas. Dentre os vários problemas que esse exagero acarreta, como também é evidenciado no texto da função, é que ninguém quer ser visto como um Outro. Nós procuramos a tipologia para nos colocarmos como Eu, genuíno, natural, especial e único. É a partir de nós que definimos quem é o Outro. Por isso, são poucas as pessoas que querem ser vistas com uma função que é definida por sua orientação às outras pessoas. Existem muitos usuários de Fe cuja autoimagem passa por ser uma pessoa autêntica, um indivíduo por si próprio, detentor de crenças e opiniões. A criação de identidade devido a crenças, opiniões e valores é comum a todos os tipos de função Sentimento, porque é a função dos valores. Com isso, para muitos, é mais fácil pintar o Outro como usuário de Fe. Por exemplo, se minha mãe cuida de mim, é porque ela usa Fe, porque essa é a relação que tenho com ela. Como eu sou um indivíduo que funciona por si só, sou de outros tipos, porque não baseio minha natureza no outro. O problema aqui é evidente. Quanto mais solipsista é a visão da pessoa, colocando as ações e pensamentos dos outros como feitos para o indivíduo, usando as relações e opiniões próprias como parâmetro para o entendimento do outro, maior a distorção. Acontece que, no caso do Sentimento Extrovertido, existem de fato pessoas que compram esse exagero. Também por motivos de identidade, é confortável para alguns sentir-se naturalmente gentis, altruístas e abnegados. Essa motivação identitária, por mais que possa não estar errada (afinal, muitas pessoas são, de fato, altruístas e orientadas às pessoas), ajuda a reforçar as narrativas exageradas sobre certos tipos e genéricas sobre outros.
Conforme o Outro é exagerado e caricaturado, ele se torna cada vez mais alienígena para o Eu. A identidade passa a requerer uma barreira intransponível entre o campo confortável e seguro do Eu e o campo exagerado e incompreensível do Outro. Na tipologia, de forma interessante, essa construção vem, justamente da pretensão de que o outro foi entendido por completo, transformando-o em uma caricatura simples do que ele realmente é. Parte disso é porque de fato o interior das pessoas é virtualmente inacessível para todos nós. Para a maioria das pessoas, é muito mais fácil identificar o tipo dos outros que o nosso. Para além disso, contudo, o Outro passa a ser relegado a um mistério simplista, ou seja, um não-mistério. É preciso entender que todas as pessoas são indivíduos completos, dotados de suas complexidades, dilemas e crenças. Mesmo a pessoa que mais prefere seguir a vida pela simplicidade também sabe que existem coisas complexas dentro de si. A tipologia deve ser sempre uma ferramenta de aprofundamento e guia sobre o outro, nunca um artifício de caricatura de um grupo irreal. Para mais detalhes sobre os usos e utilidades da tipologia, veja o texto Por que estudamos tipologia de personalidade?
Nesse fenômeno de caricatura e invenção, o Eu se sente livre para julgar o Outro como bem entende. A imagem distorcida do diferente facilita julgamentos precipitados ou simplistas, como dito. É nesse bojo que fica muito comum declarar, sem muito pensamento crítico, o desgosto ou até o ódio por determinado tipo ou grupo de tipos, aos quais são imputadas majoritariamente características negativas. Existe algo a ser pontuado aqui, porque nem todo julgamento de valor sobre tipos é necessariamente ruim, mas também é preciso haver cuidado. Justamente porque somos pessoas diferentes, justamente pelo mesmo motivo de estudarmos teorias de personalidade, também sabemos que cada pessoa possui tolerâncias diferentes para certas características dos outros. A interação social nem sempre é fácil. Algumas pessoas, por exemplo, buscam se aproximar de pessoas passivas para que possam acomodar-se ao seu bem entender, enquanto outras se incomodam muito mais intensamente com a passividade. E existem ainda aquelas que, mesmo se incomodando com a passividade, buscam-na ativamente porque não saberiam lidar com pessoas que não fossem assim. Uma mesma característica pode ser incômoda para uns e atraente para outros. Por isso, é natural que existam tipos dos quais gostamos menos, a partir do momento em que identificamos um padrão constante nesse tipo. O problema está quando a construção do Outro na tipologia é tão forte que 1) imputamos a certo tipo características que nem sempre são parte dele; e 2) exageramos essa característica a ponto de criar preconceito, ou mesmo ódio, com determinado tipo sem sequer darmos chance às pessoas. Pessoas não são tipos, e isso significa que qualquer julgamento a priori sobre ela por causa de seu tipo pode ser uma completa injustiça. Pode ser, inclusive, uma injustiça se ela for de um tipo julgado positivamente, mas, no final, for uma pessoa ruim. Por isso, existem certos limites para uma forma saudável de se lidar com preferências de tipo. A criação de um estigma sobre esse tipo e seus representantes é uma delas. Geralmente, esse estigma é uma ferramenta do ego para criar um inimigo falso que preserva a identidade confortável. A criação de inimigos externos é sempre uma forma muito barata de criar identidade externa ou identidade de grupo. Se uma pessoa repete muito sua raiva com certo tipo, ela passa a ver todas as pessoas desse tipo por um prisma negativo que não é nada menos que puro preconceito. Muitas pessoas tentam disfarçar isso na forma de “gosto” sem perceber que isso limita sua possibilidade de interação no mundo real com pessoas reais. Da mesma forma que a tipologia não pode servir como mera desculpa para os próprios defeitos, ela não pode ser usada para delegar defeitos às pessoas de forma acrítica, apenas pelo tipo, ou criar narrativas negativas de um tipo inteiro. É muito fácil perceber que as pessoas, ambientes e grupos que mais insistem que existem tipos melhores e piores são as mais vulneráveis a armadilhas do ego para cultivar vínculos puramente identitários.
Bom, como combater a construção do Outro na tipologia? Como passar de inventar um Outro ilusório para conhecer um Outro verdadeiro? Esse movimento é extremamente útil não apenas para ser justo com as outras pessoas como também consigo mesmo. A invenção do Outro tem uma função identitária que turva os indivíduos de dilemas e partes escuras que eles querem inconscientemente esconder. Nem todos aqueles que participam desse fenômeno têm uma imagem puramente positiva de si. Às vezes, pelo contrário, a autoimagem é bastante negativa, mas ela também projeta no lado de fora outras tantas situações negativas que ela prefere esconder ou não entender bem. Quanto mais a pessoa usa apenas a si mesma como epicentro de seus julgamentos sobre os tipos das pessoas e as pessoas de cada tipo, mais ela corre o risco de simplificar exageradamente as coisas. A narrativa da identidade é muito forte, o que faz com que as pessoas costumem inventar para si mesmas coisas que seriam extremamente “únicas” ou “raras”, sem verdadeiramente o ser. O exercício de alteridade também significa tentar ponderar com calma se determinada característica é exclusiva ou definidora do Eu/do Nós ou se ela também está presente no Eles. Romper as barreiras autoimpostas pelo ego também significa ir atrás de diálogo genuíno com pessoas dos mais variados tipos e opiniões sobre os tipos. Quanto mais homogêneo um grupo de tipologia parece, com os mesmos tipos e opiniões, mais ele corre o risco de, na verdade, ser apenas uma identidade confortável e ilusória. Se, por exemplo, o tipo ESTP é um tipo difícil para a pessoa, se ela sente alguma predisposição ao incômodo só de ouvir sobre o tipo, é talvez nele que se escondam algumas das projeções mais interessantes da pessoa. E é também com ele ou sobre ele que ela deveria investir em um diálogo e um conhecimento menos estreotipados do tipo. A percepção de diferentes agrupamentos também pode ajudar. Por exemplo, se a pessoa estuda apenas sob o viés de um tipo de agrupamento (como, por exemplo, os terríveis “temperamentos” de Keirsey, já criticados na introdução sobre agrupamentos, por serem pouco relevantes e anti-junguianos), há a tendência de ela criar um bairrismo simplista em que haveria um mundo muito grande de diferença entre sua panelinha e o grupo dos “Outros”. Se a pessoa observa os agrupamentos e padrões em diferentes perspectivas (vendo pela função dominante, pela de julgamento, ou de tantas outras formas), ela percebe sua proximidade com cada um dos tipos de formas diferentes.
Esse fenômeno não é original da tipologia. A tipologia é apenas mais um campo em que a relação identitária entre o Eu e o Outro reproduz esses padrões. Os estudos em ciências humanas sobre a alteridade são muito famosos, podendo-se citar A Conquista da América: A Construção do Outro, de Tzvetan Todorov, O Orientalismo, de Edward Said e Eu e Tu, de Martin Buber. Existem também outras inúmeras manifestações sobre as perguntas “o que sou eu?”, “o que somos nós?” e “o que são eles?” na psicologia, na antropologia, no cinema, na literatura e na televisão. Como a tipologia é um campo pesadamente identitário, esse fenômeno fica tão ou mais claro, e evidencia a grande necessidade de trabalho em cima do problema. O exercício de alteridade e a compreensão genuína do mundo do outro, na relação um-a-um ou nas relações entre grupos e sociedades, é um dos desafios importantes dos dias atuais. Conforme a sociedade moderna fechou-se em Estados-nação que tentavam criar uma homogeneidade interna eliminando pensamentos minoritários e criando ilusões de inimigos externos, cada vez mais existe a necessidade do rompimento de fronteiras que use a existência do Outro não na criação de uma ilusão confortável ou superior do Eu/Nós, mas sim como uma forma de vivenciar novas realidades e dedicar ao futuro comum.
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