Relações entre as duas funções opostas
A Sensação Extrovertida (Se) e a Intuição Introvertida (Ni) opõem-se, complementam-se e conflituam. O indivíduo que possui Se possui Ni, e vice-versa. Assim, é importante vê-las em separado e em conjunto. Como a Se se dedica ao mundo concreto mais objetivo e explícito possível, ela precisa abdicar de algo, daquilo que é o mais abstrato e intangível. Observar o fato requer abdicar o conceito desse fato, aquilo que deixa o fato em nome de uma ideia. A visão mais objetiva possível de uma maçã é que uma maçã é uma maçã. É uma fruta (mais precisamente, um pseudofruto) e é doce. Possui água e frutose. Tem casca lisa e vermelha e pode ser comida, ou quem sabe possa ser usada para malabares ou ser chutada. Por outro lado, para o mundo intangível, pode-se perguntar o que aquela maçã representa, ou o que pode ser representado por uma maçã, e se aquilo ressoa com a visão que o indivíduo tem da maçã. A maçã tem uma variedade de simbolismos culturais no Velho Mundo, tanto em tradições pagãs quanto na cultura popular cristã, que associa a maçã ao Fruto Proibido e, consequentemente, ao pecado, ao mal e à Serpente. Recentemente, outras situações requisitaram a maçã como símbolo: a cidade de Nova Iorque, a marca de eletrônicos de Steve Jobs, o fruto que teria dado a Isaac Newton a ideia para sua teoria, entre outros. Tudo isso afasta o indivíduo do que a maçã é de fato (fruta, açúcar, água, comida, objeto chutável) e tenta dar algum significado intangível, arquetípico, ao objeto. A maçã observada continua sendo apenas uma maçã. Por isso, a Se e a Ni têm pontos de conflito. Quanto mais se dedica à percepção objetiva, menos espaço se dá para os padrões intangíveis que acompanham o objeto, e vice-versa. Para a Se, o campo de uso da Ni geralmente parece desnecessário, desinteressante, desnecessariamente complicado ou irreal. A verdade é que a maçã não é o pecado. Ela é apenas um pseudofruto da árvore Malus domestica. E olhar para a maçã e dizer-lhe “tu és o pecado” pode parecer uma grande viagem quando claramente ela é uma fruta. Excelente para se fazer um ponche, por sinal. Enquanto a Ni tenta extrair um significado da maçã, ou da casca, ou do corte, que seja intangível e não tenha relação com aquele objeto específico, a Se encontra no próprio objeto o que é realmente útil. No entanto, existem outras relações de uma função com a outra. Antes disso, volta-se a ressaltar que o exemplo da maçã é uma metáfora explicativa e não deve ser tomado com todas as letras a não ser para a compreensão das funções. Diferentes usuários de SeNi (xSxPs e xNxJs) podem ter relações diferentes com o simbolismo e a natureza de uma maçã ou de outras coisas, e isso varia bastante com a história pessoal, mas é bem comum que essa relação fique marcada mais ou menos como foi exposta. Em usuários de SiNe (xNxPs e xSxJs), a questão é menos delineada por causa da forma diferente como o mundo abstrato e o concreto se relacionam, e é possível que uns se identifiquem mais com uma interpretação ou outra, ou mesmo com as duas.
A relação descrita acima costuma ser mais marcada na relação entre a Se-dominante e a Ni-dominante, quando as funções estão mais desbalanceadas. Quando elas se apresentam no eixo auxiliar/terciário (ISxPs e ENxJs), esse fenômeno pode acontecer, mas outro pode acontecer, e é a tentativa da pessoa em conciliar o mundo intangível com o tangível. Dois casos serão explorados aqui sobre isso: o minimalismo e a espiritualidade. O minimalismo, uma tendência estética muito forte nos dias atuais, pode ter um apelo significativo nos usuários de SeNi pela capacidade de conciliar o apreço e cuidado estéticos característicos da Sensação Extrovertida com a necessidade de conceitualização e essencialização da Intuição Introvertida. Um bom exemplo de uso característico dessa tendência de forma bem equilibrada foi o da Apple de Steve Jobs, um ISTP. Favorecendo a simplicidade e o minimalismo (inclusive em detrimento de outras funções), Jobs influenciou toda uma geração de aparelhos eletrônicos, e uma das maiores empresas do ramo, a seguirem com o máximo dessas duas características. Mais do que nunca, no entanto, reforça-se o caráter altamente alegórico dessa comparação porque, como dito, o minimalismo é uma tendência estética da época atual e qualquer pessoa de qualquer tipo pode ter interesse nele. Já no caso da espiritualidade, a conciliação entre Se e Ni vem na tentativa de ver materializar-se as expectativas intangíveis e transcendentais. É muito comum nos tipos, especialmente aqueles com Se forte e Ni fraca, a tentativa de trazer para o concreto esses símbolos transcendentais na tentativa de agarrar ou materializar o mundo abstrato. Ainda que nem todos façam isso, um bom indício de se perceber a Se-auxiliar com a Ni-terciária é no uso de tatuagens ou objetos (como filtros dos sonhos, plantas e outros objetos) que tentem capturar um símbolo para o mundo concreto (o corpo, a casa etc.). É a tentativa de trazer para o mundo da experiência concreta o mundo intangível representado pelos símbolos. Quando essa questão aparece em sujeitos com Se-dominante ou inferior, isso costuma tomar proporções mais exageradas e complicadas. A Se-dominante, pela Ni-inferior, pode sentir-se muito vulnerável ou até amedrontada por esse mundo intangível. A pessoa, que tradicionalmente foi muito factual e concreta, e via uma maçã como apenas uma maçã, passa a ver na mesma maçã uma manifestação divina, ou a procurar simpatias e rituais para garantir que o uso daquela maçã vai trazer resultados no mundo concreto. Por outro lado, na Se-inferior, o símbolo funciona por si só. Os efeitos no mundo concreto são até descartáveis, e a espiritualidade pode parecer esvaziada enquanto o indivíduo tenta ser um santo ou ícone, sem sequer se preocupar com o que efetivamente acontece no mundo concreto: o conceito vence a realidade. Obviamente, existem usuários de SeNi ateus ou agnósticos, bem como usuários de SiNe que experimentam sua própria espiritualidade e dialogam-na com suas funções. Assunto para outros textos.
Até parte dessa pincelada sobre formas de espiritualidade pode ser usada para trabalhar outro tema importante e mais geral que é sensível para o eixo SeNi: a questão da concretização. Se+Ni trabalham puxando em direções opostas, mas também cooperando em nome da materialização do mundo idealizado: se a Se representa o auge da materialidade e a Ni representa o auge da imaterialidade, a combinação das duas representa a concretização, a transformação do nada em alguma coisa, a partir das funções de julgamento que definem o que for preciso dentro da matéria-prima das funções de percepção. A Ni e a Se se repelem como polos opostos porque, enquanto a Se trabalha no concreto e para o concreto, tenta concretizar mas ao mesmo tempo aceita o que existe, a Ni rejeita o concreto em nome do ideal cada vez mais distante, cada vez mais purificado das imperfeições da realidade e cada vez menos prático, menos útil e mais, simplesmente, ideal. Paradoxalmente, então, a Se é a função com a maior capacidade de concretização e materialidade, mas que por si só não consegue definir o que deve ser concretizado além do próprio objeto – por isso, muitos sonhos megalomaníacos dos Se-dominantes passam por coisas como ganhar dinheiro ou ser presidente, por exemplo. Já a Ni é a função com mais visões direcionadas à transformação do mundo concreto, mas sem o necessário para efetivamente lidar com as demandas dele, frustrando-se e retraindo-se em idealizações desconexas e essencialistas. Uma requer a outra para que essa dicotomia se transforme em diálogo e as grandes transformações do mundo possam ocorrer. É aqui que surge uma incompreensão comum dessas duas funções: a noção leviana de “força de vontade”. Isso é algo que pode estar presente em qualquer pessoa de qualquer tipo, mas parece de fato haver uma identificação maior dos usuários de Se com essa expressão. Isso porque ela dá a entender essa capacidade de concretização, de transformação de um desejo ou vontade em algo concretizado. O problema está em que ela tem sido associada à Intuição Introvertida alta, mas isso deveria ser invertido. A Intuição Introvertida alta não vai garantir a ninguém uma força de vontade ou habilidade de alcançar objetivos. Mas é possível associá-la, principalmente em posições abaixo da inferior, à canalização de visões com objetivo primário no mundo objetivo (no caso dos extrovertidos, ENxJ e ESxP) e concreto (no caso dos sensoriais, ESxP e ISxP). É por causa desse processo que muitos dos integrantes desses tipos se identificam com a ideia de força de vontade, mas ela é leviana. Deve-se ir atrás de quais dinâmicas entre o abstrato ideal e o concreto dado estariam motivando essa força de vontade. É nessa briga entre o completamente imaterial, sacralizado e distante, frustrado com o mundo sensível, e o completamente real, feio ou bonito, cheio de oportunidades e ferramentas, que nasce a vontade de se fazer grandes transformações alquímicas do mundo, que durem e criem novas grandes narrativas.
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