As Funções Cognitivas: O Sentimento Introvertido (Fi)

Introdução, panorama geral, definição e principais manifestações

“Eu discordo”, disse Úrsula. “Eu não tenho por que concordar. Sei que isso incomoda, mas também não me importo. Até gosto de mostrar minhas opiniões, porque não estou aqui para agradar ninguém. Claro, também não quero sair dando patadas de graça, mas se falam algo com que eu não concordo eu não vou ter problemas em criticar, porque o que mais importa é que estou seguindo o que acho que devo seguir. Se estão ouvindo ou não, não importa tanto. Então discordo”.

“Me considero uma pessoa bastante fria”, comentou Xavier, olhando de forma séria para seu interlocutor. “Não sou de demonstrar sentimentos para as outras pessoas e nem sinto que preciso disso. Tudo o que eu acredito basta por si só, tudo o que eu faço basta por si só, para mim. Ninguém precisa saber o que acho das coisas; só faço isso quando estou a fim. De resto, consigo manter minha frieza, mas não se engane”.

“Algumas coisas realmente me incomodam”, assumiu Ricardo. “Muita gente já me encheu falando que eu ‘levei muito para o pessoal’, mas eu não posso ser diferente. Se algo vai contra o que acredito, vai contra mim, pessoalmente. Nem tudo me afeta assim, claro, mas o que afeta eu realmente sinto como se fosse uma ofensa pessoal. O que eu faço a respeito disso? Bom, tento não fazer muita coisa, mas nem sempre consigo. Às vezes, é inevitável que eu fique reativo ou que me isole facilmente, porque não mereço ficar em contato com essas coisas que me ofendem”.

“Rebelem-se”, falou Cristina, embora parecesse estar falando sozinha. “Rebelem-se contra tudo e contra todos, mesmo que sem motivo. Rebelem-se contra seus pais, suas escolas, contra tudo o que incomode vocês. Se se sentirem incomodados, incomodem. Se quiserem se rebelar, rebelem-se. É assim que eu ajo, é assim que eu vejo o mundo”.

“Eu passo bastante tempo tentando encontrar a mim mesma”, comentou baixo Ofélia, olhando para o chão. “Eu busco meu próprio caminho, minhas próprias escolhas, minha própria jornada, meu próprio estilo. É isso o que é importante para mim. Só existe apenas um ‘eu’, indivisível, e um caminho que ele segue. Minha vida serve para encontrar esse ‘eu'”.

“O mundo tem certos e errados. Tem pessoas ruins e tem pessoas boas. Eu faço o possível para ser uma pessoa boa. Nem sempre eu sou, mas sobre isso é importante se perdoar. No mais, eu vou vivendo, tentando caminhar do lado certo com as pessoas certas. Eu sou uma heroína contra um mundo injusto”, declarou Gabriela.

“Sabe, se você quer seguir a sua vida, siga. Esse é meu lema”, comentou Oto. “Cada um segue o que deve seguir, faz o que mais lhe interessa, vive como quer viver. Eu vivo assim. Tento fazer o que quero fazer, com todas as facilidades e dificuldades que isso acompanha. Nem sempre é fácil seguir a si mesmo e eu já apanhei muito da vida por conta disso. Mas nada me faria fazer diferente. Eu nunca vou agir de má-fé e nunca vou fazer ninguém agir de má-fé. Cada um gosta do que quiser gostar e faz o que quiser fazer.

“Me sinto muito deslocado das outras pessoas, mas isso não é ruim. Acho que me dá liberdade e até mesmo paz. É por ser deslocado que eu posso viver a minha fantasia e a minha paz. É assim que consigo me expressar de verdade, sem me sentir influenciado por qualquer coisa. Detesto me sentir influenciado, então eu seleciono apenas os lugares e pessoas em que posso realmente ser a minha expressão de mim mesmo. Todo o resto eu rejeito”, comentou Walter.

Poucas metáforas falam tão profundamente com o Sentimento Introvertido (Fi) quanto a de “decidir seu próprio caminho”. O caminho é algo pessoal e intransferível, sobre o qual apenas o indivíduo que o segue pode decidir. O campo do Sentimento Introvertido tem um papel fundamental na sociedade atual, mas, justamente por isso, é preciso cuidado ao estudá-lo. Ao mesmo tempo em que o funcionamento cultural e estrutural de uma sociedade é mais coletivo, o individualismo tem um papel fundamental nas mesmas cultura e estrutura do sistema socioeconômico em que vivemos. O Sentimento Introvertido, como função altamente individualista, tem uma relação forte com essa situação e pode fazer até mesmo com que tipos com mais tendência coletivista identifiquem-se com essa proposta individualista. Por esse motivo, em primeiro lugar será estudado o mecanismo de funcionamento e a definição do Sentimento Introvertido, para depois serem debatidos suas tendências de forma de lidar com o mundo, opiniões e comportamentos comuns, e como essas tendências ou padrões dialogam com o mundo atual, na arte e na sociedade. Será feita uma discussão aprofundada sobre as identificações gerais com o individualismo e com a função, além de um desenvolvimento maior da metáfora do caminho.

Por definição, o Sentimento Introvertido toma decisões com base em princípios valorativos subjetivos. Ele é a função da pessoalidade por excelência, por atribuir um julgamento de valor totalmente subjetivo ao seu mundo, ou seja, pessoalizar sua interação com ele. A pessoalização no Sentimento Introvertido é tamanha que ela geralmente funciona apenas por e para o próprio indivíduo que usa a função. Como função racional — por ser de julgamento — o Fi emite julgamentos valorativos sobre as coisas com base em um arcabouço pessoal de princípios que orientam esse julgamento. Para o usuário de Sentimento Introvertido, o ideal é que todas as suas ações, bem como o mundo ao seu redor, estejam alinhados com esse arcabouço de princípios e julgamentos sobre o certo e o errado, o bom e o ruim, o válido e o não válido (embora na maioria das vezes o julgamento não seja tão binário). Essa necessidade, claro, também gera uma igual repulsa ao objeto que não se conforme a esse arcabouço, com igual julgamento, reatividade ou afastamento. Contudo, o mecanismo intrínseco do Sentimento Introvertido começa e termina no sujeito. Os impactos no objeto, mesmo quando deliberados, são sempre mirados como visando satisfazer o sujeito e seu arcabouço valorativo. Por isso, o mecanismo de atribuição de valor a cada coisa tenta classificar, com base em uma forma de pensar bastante pessoal, as ações e decisões de acordo com o que elas devem ser. É útil, aqui, usar a raiz da palavra “valor”: a significância qualitativa de determinada coisa. Em tipologia, o Sentimento é a função racional responsável por atribuir valores a partir de princípios claros (enquanto as funções perceptivas podem atribuir valores em um processo irracional). O Fi, portanto, funciona ao julgar, atribuir pesos e validades pessoalizados e subjetivos, mas racionais, ao seu mecanismo de tomada de decisões.

O julgamento subjetivo e valorativo compele o indivíduo a criar uma narrativa para a realidade e, principalmente, para seus atos, que esteja em harmonia com esse julgamento. Para isso, é preciso criar um vasto e autorreferente arcabouço de princípios que consigam atribuir os valores necessários. Como esse arcabouço é subjetivo e envolve a pessoalidade, ele pode parecer bastante incoerente para olhares de fora. Em um grande número das vezes, ele de fato é incoerente. Porém, para o indivíduo, existe uma constância e uma coerência fundamentais em sua atribuição de julgamentos pessoais do mundo, afinal, o Sentimento Introvertido é uma função racional e seu uso dá à pessoa uma sensação de fidelidade a esse arcabouço. Assim, o usuário de Sentimento Introvertido sente que deve calibrar suas decisões de acordo com uma estima totalmente sua de como as coisas e ele mesmo devem ser. Na maioria das vezes, essa estima tem um componente moral importantíssimo, embora a ideia de “valor” não diga respeito apenas à moralidade. O valor próprio e subjetivo pode gerar um tipo de moralidade bastante centrado no próprio arcabouço pessoal, ou seja, centrado no próprio indivíduo. Em alguns usuários de Sentimento Introvertido, principalmente dominante e inferior, isso pode gerar uma visão de moralidade dualista, preto-e-branco, certo-e-errado. Quanto mais baixo o Sentimento Introvertido, mais vulnerável ele está a isso, dada a simplicidade das funções baixas. Ainda assim, o fenômeno existe nas diferentes posições. Quando isso acontece, nem sempre o usuário da função percebe essa atribuição rigorosa. Ela leva o usuário a usar a si mesmo como o peso da balança do que classifica como bom ou ruim, justamente porque os valores são subjetivos, não objetivos. Essa moralidade, em última instância, pode levar a um complexo de heroísmo complicado se o usuário de Sentimento Introvertido realmente colocar-se como um pária moral contra um mundo que não corresponde a suas atribuições de valor. Em menor grau, de qualquer forma, existe sempre uma rejeição do objeto e dos métodos de decisão objetivos pelo Sentimento Introvertido. Por ser de julgamento introvertido, o Fi tem necessidade de decidir seus princípios de forma alheia ao objeto, e muitas vezes contrária a ele, como forma de afirmar sua independência dele. Para o Sentimento Introvertido, as decisões começam e terminam no indivíduo; são feitas por ele e são feitas para ele. Os métodos de decisão com base no objeto podem ser vistos como altamente invasivos, o que leva muitos usuários de Sentimento Introvertido forte (xxFP) a adotarem uma postura reativa com relação a eles, preferindo manter a independência do “seu próprio jeito” e seu próprio julgamento ao invés de compreenderem como o meio externo pode fornecer outras forma de tomada de decisão. A necessidade de rejeição do objeto pode ser tão forte que ele passa a simplesmente não mais importar (é o caso, por exemplo, da narrativa do heroísmo descrita anteriormente). O Indivíduo prefere criar narrativas em que ele julga os acontecimentos como certos e errados, bons e ruins, de forma a nunca dar chance para que o objeto se explique por si mesmo ou nos seus termos, fechando-se em um julgamento inadaptável a realidade, satisfeito apenas por uma “harmonia interna” que justifica a si mesma. Isso, claro, em casos mais extremos e doentios.

Como os valores (e, às vezes, até os sentimentos) começam e terminam no sujeito, existe um número bem grande de usuários de Sentimento Introvertido, especialmente os de Sentimento Introvertido dominante (IxFP) que se identificam e se veem como extremamente frios e inexpressivos. A manifestação da valoração e dos sentimentos (algo que está ligeiramente, mas pouco, relacionado às funções cognitivas) pode parecer secundária ou até invasiva para o usuário de Fi-dominante, que vê a si mesmo como frio porque não sente necessidade de demonstrar ou porque acha que isso será usado contra ele, de alguma forma. Essa manifestação fria do Sentimento Introvertido que é apresentada por alguns usuários é frequentemente ignorada em descrições das funções. Existe um número bem grande de personagens Fi-dominantes com essa baixa expressividade na ficção que são lidos erroneamente em termos de tipo por esse motivo. É o caso, por exemplo, de Sasuke Uchiha (Naruto), Eren Jaeger (Shingeki no Kyojin) e Arya Stark (Game of Thrones). Eleven (Stranger Things) e Vanya Hargreeves (The Umbrella Academy) seguem o mesmo padrão, embora sejam menos confundidas. Mesmo a expressividade de sentimentos daqueles usuários de Fi-dominante que não se identificam com a frieza repete o processo de ser algo em última instância voltado para si mesmo. A demonstração pode ser reativa e agressiva ou retraída e autocentrada, mas frequentemente, salvo poucos casos, é perceptível que ela funciona para si, muitas vezes como forma de afirmar a si mesmo e aos próprios valores. Quando um usuário de Fi provoca alguém, seja por reatividade pessoal ou necessidade política, é provável que ele o faça para validar a si mesmo como alguém bom que fala o que quer, sem real intenção de dialogar com o que o objeto (o outro, no caso) propõe. Claro, outras manifestações da função são bem mais suaves, também raramente por motivos externos, mas porque surgiu do próprio indivíduo alguma necessidade de manifestar sua valoração de forma suave e/ou retraída.

Dito isso, percebe-se o motivo da importância dada pelo Sentimento Introvertido pela “busca de si”. Esse fenômeno, que é presente em todo ser-humano, ganha uma sensibilidade gigantesca para uma pessoa que precisa medir e julgar o mundo com base em seus próprios valores. Quanto mais esse arcabouço valorativo é descoberto, mais o usuário consegue ter certeza de si e pode afirmar melhor seus julgamentos. Essa jornada varia significativamente de usuário para usuário, e ter essa função não significa uma capacidade automática de autoconhecimento, mas a ideia de caminho pessoal é muito útil para explicar a busca do Sentimento Introvertido por validar a si mesmo ao encontrar a si mesmo. Tanto na autoimagem heroica, que rejeita o objeto como mau e “inimigo”, quanto em outras manifestações do Fi, o usuário busca certificar-se de que o caminho que está seguindo é o seu próprio, de que suas decisões sobre a direção e sobre a própria estrada são suas, de forma independente ao objeto. Obviamente, como as funções não representam “poderes” intrínsecos, isso nunca significará que todo usuário de Fi sabe distinguir o próprio caminho do caminho alheio, mas essa questão é sem dúvida sensível à função. Por esse motivo, o Sentimento Introvertido é altamente associado à busca constante por uma identidade pessoal e um estilo pessoal. Muitos usuários de Fi forte (xxFP) têm isso como obsessão ou como base da sua identidade: a criação de um estilo pessoal independente, por vezes irreverente. A forma que encontram de “seguir seu próprio caminho” é encontrando um nicho em que identificam-se a nível pessoal (ou seja, em que tudo ali é valorizado pelo Sentimento Introvertido, aquele que tudo pessoaliza). Outra forma bastante comum de encontro do próprio caminho é pela reatividade e pela rebeldia. Ir contra o objeto para garantir o próprio caminho é, muitas vezes, reagir de forma pessoal e identitária contra aquilo que pareça ser autoritário ou impositivo. Se por um lado essa função realmente ajuda no combate a autoritarismos, ela mesma possui o germe do autoritarismo ao funcionar atribuindo valores totalmente pessoais ao que está à sua volta. Muitos usuários de Fi são vulneráveis ao autoritarismo exatamente graças a essa função. De certa forma, seria dizer que rebeldia e imposição andam de mãos dadas.

Claro, por essa descrição, é muito fácil compreender por que personagens usuários de Fi-dominante são tão comumente usados para representar dilemas adolescentes de revolta identitária e transição para a vida adulta na ficção, como é o caso de Ben Solo Skywalker/Kylo Ren em Star Wars. A rebeldia adolescente é uma época pela qual todos passam que funciona muito bem como metáfora do Sentimento Introvertido. O período da adolescência é marcado pela ruptura com as figuras e autoridade, pela busca de afirmação da individualidade (não apenas com revoltas, mas também com exploração de estilos próprios, obsessão com o “caminho da própria vida” e com as decisões que mais se adequariam aos interesses e valores do indivíduo). Essa associação, por mais frutífera que possa ser para a compreensão do tipo e da função, deve ser lida com cuidado exatamente porque a adolescência e o começo da juventude são períodos passados por todas as pessoas. Ainda mais, justamente porque se trata de uma época em que a busca de si é muito forte, também é nela que a maioria das pessoas entra em contato com teorias de personalidade, para melhor se diferenciarem dos outros. Isso leva ao ponto de o Sentimento Introvertido poder gerar identificação relativamente fácil nas pessoas que passam por essas idades. Para piorar, em última instância, o Sentimento Introvertido não é apenas a função da rebeldia identitária adolescente, mas também uma função muito apegada aos conceitos de autenticidade e expressão individual. Esses valores são muito encorajados e reforçados pela sociedade atual. Frases como “seja você mesmo” e “mantenha-se fiel aos seus valores” são tão presentes que é inevitável que quase todas as pessoas nessa sociedade se vejam prezando pela individualidade, pela autenticidade, pela consciência dos próprios valores. Por isso, esses termos são insuficientes para identificar um usuário de Sentimento Introvertido. São tantas obras, filmes, livros, festivais, eventos e celebridades que dizem sobre isso que já se pode falar de uma cultura coletiva da expressão individual. É muito difícil encontrar alguém que não ache que seus valores são seus de fato, ou que não tenha entrado em algum “caminho próprio” de estilo, identidade ou expressão.

Um exemplo da presença do Sentimento Introvertido na cultura e na filosofia é o pensamento existencialista. Especialmente os trabalhos de Albert Camus (que não se considerava existencialista, contudo) e Jean-Paul Sartre são bem atrelados à lógica do Sentimento Introvertido. O pensamento de Sartre dita que os seres-humanos são dotados de uma liberdade radical e de capacidade de escolher seus próprios significados em um mundo sem nenhum. Aqueles que não buscam um significado pessoal agiriam de má-fé consigo mesmos, e o homem existencialista deve ter consciência de sua liberdade para encontrar o que realmente lhe faz querer agir. De forma similar, Camus também advoga pela busca do próprio caminho em um mundo absurdo. Os estudos pós-estruturalistas e queer de Judith Butler também são bem facilmente associados ao Sentimento Introvertido. Como o Fi pode ter um interesse identitário bem intenso, que busque criticar ou combater estruturas anteriormente definidas de consensos sociais de identidade, o pensamento de Butler sobre identidade e performatividade de gênero, bem como sua própria postura como ativista, pode demonstrar as influências sociais que o arquétipo do Sentimento Introvertido tem. Em grande medida, como pode-se esperar das funções de Sentimento, as teorias e abordagens filosóficas que mais podem ser associadas ao Fi são as teorias normativas, ou seja, aquelas que buscam não tanto explicar como algo funciona como também descrever como ele deve funcionar. Isso leva a um ponto importante: discutir a relação entre Fi, ética e egoísmo. Como o Sentimento começa e termina no indivíduo, seria fácil supor que o Sentimento Introvertido seria uma função egoísta. Embora esteja longe de estar relacionado ao altruísmo absoluto, também é grandemente errôneo pensar que a moral individual que rejeita o objeto seja antiética ou egoísta por natureza. Os próprios existencialistas tiveram seus esforços em criar uma “ética existencialista”, e outros trabalhos e pensamentos associados ao Fi também mostram o potencial ético da função. Da mesma forma, a colocação do indivíduo como pária de decisões pessoalizadas também pode, sim, levar ao egoísmo. Assim, é importante separar um pouco a ideia da função do determinismo de alguém ser ético ou não.