Introdução, panorama geral, definição e principais manifestações
“Eu queria, na verdade”, continuou Zara, sob o olhar incrédulo de sua companhia, “era me ‘desfazer’ de algum jeito. Não digo mudar, e sim talvez mais que isso. Eu queria entrar em um casulo, extirpar todos os meus pecados e todas as minhas virtudes e virar algo… sublime. Algo com o qual eu possa me maravilhar simplesmente por não ser ninguém. Por ser um conceito”.
“O quadrado representa a ordem, a racionalidade, o controle”, explicou Henrique. “Eu quis pintá-lo assim porque acho que ele pode representar o Ocidente como um todo, para além daqueles símbolos já muito gastos. Nascendo do quadrado, pus quatro formas estilizadas para representar os quatro elementos clássicos. Eu quis imaginar essa figura de alguma forma alquímica, e, por isso, esses quatro símbolos convergiriam, no centro, nesta hipérbole que eu pensei como a simplificação de uma árvore, unindo o céu e a terra, o natural e o humano, o que, para mim, é o propósito da ciência. Foi aí que fiz isso que quis para ser a minha intenção para um símbolo geral, moderno, da ciência, mas com diálogo com o clássico também”.
“Eu vi algo recentemente”, disse Isabela. “Eu me vi correndo por uma viela torta, ao lado de uma pessoa que ainda não conheci, em La Paz. Ainda estou trabalhando nas causas disso, mas já decidi pelo menos o destino da viagem sobre a qual estava em dúvida. Vou para a Bolívia”.
“Existe algo que causa fascínio no rastejar pútrido dos vermes”, Alice dizia, com o olhar direcionado a algum lugar intangível, como se completamente absorta. “A forma como eles se contorcem é como eu imagino que funcione a própria vida. Tudo o que eu vejo são os acontecimentos se contorcendo entre si e se repetindo nesses padrões nauseantes. As voltas que esses vermes dão são como a própria vida humana, cada fato rastejando ao redor de si mesmo como fruto da decadência. Acho que existe algo de divino ali”.
“Talvez seja melhor que eu não aceitasse”, recusou Hugo. “Ainda não tenho tudo decidido comigo e, embora essa oportunidade que você me oferece seja tentadora, eu não tenho certeza se ela é ideal em todos os aspectos. Existe a chance de eu aceitá-la e acabar me perdendo; se eu fizer isso, eu devo acabar perdendo um tempo que eu não quero com algo que, sim, pode ser muito bom, mas eu mesmo vou me cobrar muito a aproveitar isso da forma perfeita, o que vai fazer com que eu não aproveite nada. Melhor eu nem tentar”.
“Se as coisas não têm simbolismo, elas não valem a pena pra mim”, comentou Nívea, afastando-se da rua. “Não vejo sentido em desenhar, em dançar, ou mesmo em comer se não conseguir ver ou dar significado ao que estou fazendo. Eu geralmente preciso de um sinal claro ou uma organização simbólica, ou uma referência, ou uma visão específica do que gostaria de ver para que esse tipo de coisa tenha sentido. Nada parece ser bom por si só”.
“A arte visual me incomoda. Eu sei, eu sei que me frustro muito facilmente”, reconheceu Erick, “mas eu não consigo parar de pensar que nada conseguirá expressar com a perfeição necessária o que não existe. Nenhum desenho ou pintura ou vídeo jamais terá valor infinito para mim. Por algum motivo, me parecem todos limitados. E, mesmo assim, eu não consigo passar um dia sem arte”.
“Eu desisti de muita coisa quando notei algum sinal negativo qualquer”, disse Carlos. “Não é algo de que me orgulhe, claro, mas faço com muito mais frequência que a maioria das pessoas. Esses sinais negativos, que eu interpreto, soam quase como presságios de algum corvo, mas eu não acho que eles sejam nada místicos. São apenas a minha forma de ler as coisas. E desistir delas depois, claro. Já levei muito puxão de orelha de amigo meu por isso”.
Como toda percepção introvertida, a Intuição Introvertida (Ni) navega na sua própria subjetividade. Ela diz respeito a uma forma de perceber o mundo e absorver as informações que ele oferece, o que confere o caráter irracional da função. No caso da Ni, essa subjetividade é marcada por um mundo abstrato governado por símbolos, arquétipos, atribuição de significados e padrões e um mundo imagético pré-verbal. Por vários fatores, a Intuição Introvertida é a função que mais pode gerar dificuldades no seu entendimento e requer cuidado no seu estudo. Para o entendimento “completo” da função, o ideal requer um conhecimento mínimo de outros conceitos da psicologia analítica que, além de também serem trabalhados neste site, serão comentados aqui. Além disso, a própria natureza da função, irracional, subjetiva e abstrata, faz com que ela seja orientada por um mundo por si só de difícil verbalização. O caráter introvertido faz com que o campo da Ni seja baseado na interpretação pessoal do indivíduo sobre o mundo, o que é relativamente difícil de ser acessado. O caráter irracional torna essa interpretação mais imagética e menos verbal, o que dificulta sua explicação. Por fim, o caráter abstrato da função de intuição torna-a ainda menos tangível. Por todos esses aspectos, longe de tentar-se fetichizar a função, é importante ter isso em mente para que seu mecanismo seja estudado com profundidade e calma. A Intuição Introvertida, como descrita originalmente por Jung, seria a função mais próxima dos arquétipos e do inconsciente coletivo, dois conceitos fundamentais para a psicologia analítica. Portanto, ainda que seja possível descrever uma interpretação menos relacionada a outros conceitos junguianos, estudá-los é fundamental para o estudo aprofundado da Intuição Introvertida.
Por definição, a Ni percebe o mundo de forma abstrata e subjetiva. Sendo irracional, ela se orienta por aquilo que chama mais atenção, que salta como importante na psique. Mas aquilo que chama atenção é totalmente alheio ao que tem concretude ou que surge no mundo objetivo. A Intuição Introvertida deleita-se com aquilo que for abstrato (ideias, conceitos, padrões, simbologias e especulações) que sejam reconhecidos pelo sujeito como fundamentais e, de preferência, que saltem quase espontaneamente no próprio sujeito. É por isso que um dos principais elementos trabalhados pela Ni são as ditas “imagens do inconsciente”. Nelas, o indivíduo usuário de Intuição Introvertida navega como se fossem o mundo real. Elas saltam à psique de forma relativamente espontânea e fazem com que o indivíduo prefira guiar-se no mundo por elas e para elas. Ou seja, é principal no funcionamento da Intuição Introvertida a interação constante e incessante com as imagens do inconsciente que aparecem para o indivíduo em sua reflexão normal. Devido ao fator subjetivo, essas imagens do inconsciente tendem a fazer sentido unicamente para a pessoa que as tem, podendo estar total e completamente descoladas da realidade dos fatos. Nesses casos, a interpretação é muito mais importante que o que aconteceu de verdade. Uma boa relação aqui é a aproximação entre a loucura e o visionário, duas situações muito associadas à Intuição Introvertida. Isso porque essas imagens do inconsciente podem ser vistas como “visões” ou “insights transformadores” por seus usuários. Isso demonstra que a forma de divagação da Intuição Introvertida é fortemente pré-verbal. Mesmo quando se debruça em conceitos e palavras, a Intuição Introvertida dá um caráter menos estruturado e quase “visual” a esses conceitos. Tanto usuários de Ni alta (xNxJ) quanto de Ni baixa (xSxP) costumam dar significativo valor a essas “visões” do inconsciente quando elas vêm. Agora, como dito, a loucura e a visão são duas coisas que andam juntas, inclusive nas definições do dicionário. O caráter imensamente subjetivo e individual da Intuição Introvertida também vem junto com um surpreendente universalismo potencial nos símbolos e imagens articulados pelo usuário. Uma das principais pontes que explicam essa situação é a ideia de inconsciente coletivo de Jung. O inconsciente coletivo é a seção da psique humana que é comum a todos os indivíduos. É nele que residem os arquétipos que são compartilhados em muitas ou todas as sociedades, com manifestações diferentes em cada uma. Os arquétipos são padrões abstratos de conotação universal, aparecendo na(s) história(s) humana(s) e performando papéis mais ou menos específicos nelas. Aqui, o conceito de “história” inclui tanto o fluxo do tempo e dos fatos humanos quanto os mitos, lendas e narrativas produzidos pela humanidade. Os arquétipos, segundo a psicologia analítica, aparecem de formas variadas e são fruto das vivências comuns e da natureza da psique. A Intuição Introvertida, por sua vez, devido ao seu caráter abstrato, seria orientada a mergulhar nas imagens do inconsciente que beberiam dos arquétipos do inconsciente coletivo. Ou seja, a forma de ver o mundo da Ni é, na maioria das vezes, altamente arquetípica. É por esse motivo que, mesmo sendo a epítome da subjetividade, a Intuição Introvertida tem uma tendência e até mesmo um vocabulário altamente universalistas. Se conseguir mergulhar bem no inconsciente coletivo e formar imagens coerentes, a Ni tem a capacidade de identificar padrões abstratos que circundam a sociedade, as coisas e seus interesses. Aqui é onde a fronteira entre loucura e visão fica mais intensa.
A busca por padrões abstratos que criem uma visão de mundo subjetiva vai dos arquétipos (conceito atrelado à psicologia analítica) aos símbolos (conceito não necessariamente atrelado à psicologia analítica). A Intuição Introvertida é altamente simbólica e busca concentrar os padrões e imagens pelos quais navegou e divagou em símbolos específicos. Essa faceta da Intuição Introvertida está muito relacionada à tentativa de essencialização. Como a função possui um filtro subjetivo para o mundo abstrato, ela seleciona quase inconscientemente os elementos abstratos pelo que for mais digno ou plausível para o sujeito. A busca por arquétipos e símbolos é selecionada e o indivíduo tenta reduzir suas imagens ao que seja mais essencial. A Intuição Introvertida tem uma grande necessidade de encontrar essências dos elementos que observa, para melhor traçar os padrões universais. Um dos objetivos que a Ni, principalmente dominante, tem, é o de resumir uma ideia em um conceito, uma imagem — genericamente, uma essência — e de explorar todo o máximo dessa única ideia, que aglutinaria em si o tema tratado pela Ni. Justamente por tentar refletir sobre todo e cada lado do ponto que chamou a atenção da Intuição Introvertida, o indivíduo pode não conseguir reduzi-lo de forma satisfatória para ele mesmo. O que costuma acontecer nesse momento é de o usuário de Ni passar a ter um pensamento espiralado, que dê voltas ao redor do ponto enquanto ele sente que não consegue alcançá-lo. Por isso, assim como na Sensação Introvertida, a Intuição Introvertida pode cair em prolixia ao mesmo tempo em que busca a simplicidade. No entanto, a prolixia da Intuição Introvertida costuma ser bem diferente daquela da Sensação Introvertida, que se delonga mais em fatos e acontecimentos, enquanto a Ni costuma dar voltas mais ao redor de ideias e temas abstratos. Nesse aspecto, um fenômeno relativamente comum é alguns usuários de Ni alta criarem um apego muito grande ao campo verbal, apoiando-se nas funções de julgamento para garantir que conseguem sistematizar as constantemente amorfas imagens do inconsciente. Mais uma consequência da dedicação máxima a uma ideia é a constante necessidade da Intuição Introvertida em fazer uma ponderação cautelosa e deliberada de tudo o que passa por ela, que assola a maioria dos integrantes do tipo com essa função dominante.
Outra consequência da Intuição Introvertida é a persistente fuga do objeto. As visões e conceitos selecionados subjetivamente pela função opõem-se à realidade e, claro, têm prioridade. Pela seleção da percepção introvertida, existe um alto grau de sacralização do mundo abstrato e dos conceitos que saltam dele. Por vezes, a Intuição Introvertida tenta até mesmo encarnar esses conceitos abstratos como forma de concretizá-los no mundo real. É relativamente comum que usuários de Ni queiram ver-se como incorporações de um arquétipo ou conceito, como “eu sou a morte”, por exemplo. Esse fenômeno pode acontecer até mesmo em usuários de Ni baixa, mas com suas particularidades. Na ficção, é o exemplo de Relâmpago McQueen, protagonista de Carros, usuário de Ni-inferior, que usa a encarnação do conceito de velocidade como forma de se integrar ao mundo concreto. No caso da Intuição Introvertida alta, essa encarnação costuma ser uma forma de fugir do mundo concreto, como dito. Ela carrega consigo uma tendência à idealização extrema. Aqui, o conceito de “ideal” remete bastante ao platonismo, que, por sinal, é uma corrente filosófica bastante associada à Intuição Introvertida. O pensamento platônico imagina a essência das coisas como fundamentalmente separadas do mundo real, pertencendo ela ao mundo das ideias, e enxergando o mundo sensível como uma mera cópia. Assim mesmo, para a Intuição Introvertida, o ideal sacralizado é mais importante que a experiência concreta. Não por menos, o grau de frustração a que está propensa a Intuição Introvertida forte é muito grande. A obsessão com a imagem idealizada e a essência das coisas faz com que a função coloque essa imagem antes de qualquer outra coisa. Isso pode levar a uma forma obsessiva de ver o mundo, ao subordiná-lo a qualquer que seja o ideal abstrato sacralizado. No entanto, por se afastar do objeto, a Intuição Introvertida por si só tem problemas com a concretização da ideia idealizada, porque isso requer engajamento e adaptação ao que a realidade de fato dá, o que cabe a outras funções. É também por isso que a Ni é tão propensa à frustração, pelo abismo que existe entre o ápice da essência idealizada e aquilo que existe de fato. A idealização pode ser tão intensa que a Ni a refina e afunila ao máximo. Ou seja, não são apenas os arquétipos que são trabalhados em sua totalidade, mas também as idealizações. A Ni não se contenta se uma hipótese idealizada não estiver desenvolvida ao máximo, em todas as suas consequências também ideais. Igualmente, a função é capaz de perceber e trabalhar o “máximo negativo”, tentando compreender as situações “idealmente negativas”. Por esse motivo, é comum que a Intuição Introvertida guie-se por um pensamento linearizado, em que o ponto último é o ideal nunca alcançado. Também por isso, a Ni em qualquer posição é propensa à megalomania. Isso não é uma regra, tanto porque existem usuários de Ni sem essa tendência, quanto porque existem usuários do eixo SiNe (xSxJ e xNxP) com ela, mas esse pensamento linearizado e idealizado pode facilmente descambar em divagações megalomaníacas sobre si ou sobre o mundo. Claro, esse também é um fator que influencia a frustração. Ao mesmo tempo, isso impulsiona a criação de grandes narrativas holísticas que tenham algum tipo de significado simbólico para a Ni. A Intuição Introvertida pode ser associada às abordagens filosóficas que criam grandes narrativas da história, como a dialética, tanto a hegeliana quanto a marxista. Ambas dizem-se capazes de ler os padrões da história e apontar como ela caminha em direção a um ideal específico.
O pensamento linear da Intuição Introvertida não necessariamente significa uma linearidade temporal. Ou seja, ainda que muitos detentores da função direcionem seu pensamento linear para tentar concatenar os fatos passados e presentes e projetar os próximos, em nome do ideal, nem todos fazem isso. Muitas manifestações da Ni são, pelo contrário, altamente atemporais e destacadas até mesmo da sequência dos fatos. Em verdade, muitos usuários de Ni alta, em nome de um momento ideal, podem acabar ignorando o próprio tempo, como se fosse ilusório. No movimento de fuga da realidade, o indivíduo pode acabar inerte, preferindo apenas antecipar e divagar sem efetivamente agir ou interagir. Nisso, para uma pessoa idealista e frustrada, o Ni-dom pode apresentar uma postura surpreendentemente estoica. Ela geralmente aparece quando a antecipação dos eventos, num pensamento linearizado, leva o indivíduo a desistir da ação antes mesmo de qualquer coisa, preferindo contemplar os fatos, padrões e o mundo inteiro sem chegar a encostar neles de fato. Isso também tende a conferir um caráter “aéreo” a muitos detentores de Ni-dominante, naqueles em que a Intuição Introvertida manifesta-se distanciando-se muito do mundano. Algumas pessoas de outros tipos podem acabar identificando-se com esse caráter aéreo quando elas mesmas sentem-se de alguma forma afastadas do próprio corpo, mas, nos Ni-dominantes, isso chega a adquirir formas intensíssimas.
Nesses e na maioria dos outros detentores de Intuição Introvertida, é muito comum que a orientação para o abstrato, para imagens subjetivas, descambe em uma dificuldade geral de articulação com o objeto. Isso inclui a fala, que frequentemente é desconexa, até mesmo incompreensível, segundo alguns. É comum que a Intuição Introvertida tente usar uma linguagem muito metafórica e simbólica para verbalizar as imagens que lhe saltaram, o que só piora a inteligibilidade da fala. Uma boa articulação verbal por parte do usuário de Ni dominante passará, quase necessariamente, pelas funções de julgamento. Caso contrário, por mais visionária que a divagação da Ni consiga ser, ela corre o risco grave de ser expressada não menos como uma loucura vã qualquer. É por isso que, para Jung, a Intuição Introvertida é a função de artistas e profetas loucos. Jung descreveu o tipo ideal da Ni, aquele que se manifestaria sem a influência das funções de julgamento. Nesse caso “puro”, pintar o indivíduo com Intuição Introvertida como um artista delirante é importante para entender o significado básico dessa função. Contudo, claro, ela se manifesta de outras formas em outras pessoas, além de, no caso concreto, conseguir articular-se melhor com as funções auxiliar e terciária. Os conceitos centrais para a função, que se manifestam em indivíduos diferentes, são: as imagens inconscientes, a divagação, o simbólico, o arquetípico, o deliberado, a essencialização e a sacralização do mundo abstrato.
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