Introdução, panorama geral, definição e principais manifestações
“Já me chamaram de inconsistente”, falou Ulisses. “Provavelmente eu sou mesmo. Inconsistente, inconstante, até desistente. É curioso estar acostumado com a própria dificuldade de se acostumar. O costume me faz desistir. Existe algo em mim que prefere sempre olhar para outras tangentes e abandonar tudo o que for desinteressante. Acho que já fiz muita coisa a partir disso, mas tudo parece meio incompleto. Por enquanto, tudo bem. A inconsistência é incompleta mesmo. Desistir e abandonar são as únicas formas que eu encontrei de continuar sempre começando”.
“Eu tenho muita dificuldade em saber o que eu quero”, disse Quincas. “Talvez porque eu queira tudo, talvez porque eu não queira nada. Todos os temas pelos quais já me interessei, todos os projetos em que entrei, e, principalmente, todos aqueles dos quais desisti foram sempre grandes perguntas minhas sobre o que eu queria. A resposta pra essas perguntas não deve ser tão fácil, e não deve ser simplesmente que eu não gostava daquelas coisas. Provavelmente a resposta é que eu quero exatamente isso: entrar, provar e desistir eventualmente. Talvez a resposta seja justamente que não existe resposta”.
“A minha intenção é pensar em algo que realmente nunca foi pensado antes”, comentou Selena, com um pouco de raiva no canto dos olhos. “Não importa se é grotesco, se é feio, se é perturbador, tosco, tóxico ou problemático, ou mesmo se é ruim e mal-feito. Eu só preciso que seja novo, que eu possa olhar e ter certeza de que é impossível que alguém tenha pensado nisso antes. Que eu juntei duas ou três coisas que ninguém no mundo já fez”.
“Minha cabeça é como um circo”, anunciou Kelly. “Sempre existe uma próxima atração prestes a entrar. Algumas são surpreendentes, outras são bem medíocres. Os palhaços aparecem mais do que deveriam. Eu gosto de muitas atrações, eu tento dar atenção para todas, mas nem sempre consigo. Ah, e o picadeiro está em chamas”.
“Eu adoro especular”, observou Paula. “Tudo pra mim pode gerar alguma faísca de conexão sobre o que pensar a seguir. Mesmo aquilo que é visto como ‘desnecessário’ ou ‘aleatório’ para as outras pessoas eu levo muito a sério, mesmo no tempo livre. A especulação faz parte de mim, não é um mero jeito de jogar conversa fora. Pensar sobre o que vai ser e o que poderia ter sido, fazer tangentes inesperadas e associações levianas é praticamente meu jeito de ser. É assim que eu percebo quais são as próximas divergências que quero seguir. Eu tenho compromisso com a falta de compromisso”.
“Eu tenho muitos, muitos interesses. Dos mais diversos”, completou Wesley. “Eles me capturam em vários projetos e focos os quais acabo não conseguindo sempre balancear. Mas o mais interessante é que, quando estou direcionado para essas várias coisas, eu raramente preciso lidar com alguém. Gosto às vezes de debater ou trocar ideias sobre meus projetos, mas o principal são meus projetos, e com eles eu posso lidar sozinho”.
“Mas, afinal”, perguntou Igor, “se nas sociedades antigas tinha muito mais cores do que acreditamos, como elas percebiam essas cores? E como nós mesmos enxergaremos as cores daqui 147 anos? Por que eu disse 147? Será que isso foi influenciado pela forma como eu percebo a cor verde? Por que a cor verde seria responsável pelo 147? E, aliás, as plantas podem ter consciência de que são verdes? Se a percepção das cores é cultural, como os animais lidam com elas?”
“Uma vez”, explicou Helena, “eu me perguntei o que aconteceria se o mundo fosse invadido por espirais. Por que espirais? Não tem muito um motivo, mas foi algo que me estalou na hora. Então eu desenvolvi a ideia. Meu vilão poderiam ser espirais, aranhas, modelos de toga, cadeiras elétricas ou El Inca Garcilaso de la Vega. Se parece interessante, eu desenvolvo a ideia”.
Há certa tendência a uma simplificação exagerada do que a Intuição Extrovertida (Ne) significa como função, como tipo e como manifestação arquetípica no mundo. Entender a função requer, portanto, entender todas as implicações e mecanismos que compreendem tanto a intuição quanto a atitude extrovertida quanto a função em si. Isso significa passar por fenômenos que, às vezes, são relativamente presentes em todos os seres-humanos, mas que para a Intuição Extrovertida são temas mais sensíveis e que captam tão mais a atenção dessa visão de mundo que costumam orientar a própria consciência para isso. No caso da Ne, isso acontece no campo da irracionalidade, ou seja, da percepção junguiana, em que a função cria uma forma de perceber o mundo e se orienta para determinadas coisas dentro dessa percepção. Assim, para evitar desentendimentos, este texto primeiramente trabalhará a definição de Intuição Extrovertida e o mecanismo que diz respeito a essa definição. Posteriormente, ao serem apresentadas tendências gerais de manifestação da Ne, será feita também uma breve discussão sobre a extensão desse tipo de tendência, para que ela não seja vista nem de uma forma exageradamente comum nem exageradamente de nicho.
A Intuição Extrovertida percebe o mundo de forma abstrata e objetiva. O objeto de interesse da função é o campo de hipóteses, ideias, especulações e associações que são percebidas sem filtro pelo indivíduo. Isso significa que, na visão de mundo construída pela Ne, toda hipótese é possível e, nesse fato, o usuário de Ne mergulha nessas hipóteses buscando aproveitar o máximo dessa lógica. As coisas ao redor só oferecem interesse no momento em que representam, de forma abstrata, potencialidades também bastante hipotéticas. As hipóteses, conceito central para a compreensão da Intuição Extrovertida, saltam na mente do indivíduo com bastante facilidade, exatamente porque o mais interessante é o que está além da experiência, além da comida e da música, nas potencialidades observadas a todo o momento. Esse é o campo abstrato representado pela função Intuição: a preferência por padrões, tendências, hipóteses, associações e ideias abstratas acima de qualquer percepção de concretude, pragmatismo, deleite na experiência, apreciação da estética, do visual e do auditivo etc. O caráter objetivo faz com que essa função comece no objeto e termine, também, no objeto. Ou seja, ela absorve o mundo abstrato que vem imediatamente do objeto, sem subjetivação prévia, e também engaja nesse mundo abstrato para e com o mundo externo e as coisas que vêm dele. O saltar de ideias na mente costuma alimentar-se por si só: elas saltam e são usadas para outras associações ad infinitum. Esse é o motivo pelo qual o caráter objetivo da percepção extrovertida costuma parecer incansável nessa forma de ver o mundo. No caso da Intuição Extrovertida, direcionada para o abstrato e hipotético, o campo das ideias funciona por si só e tem total prioridade, costumando orientar para qual objeto o indivíduo orientará sua atenção. A experiência só ganha sensibilidade para a Intuição Extrovertida se nela existe uma conexão ou possibilidade que vá além da pura experiência, que amplie a gama de direções nas quais o indivíduo pode se embrenhar. Como o caráter é objetivo, a forma de escolha dessas direções vai pelo que é mais interessante. Novamente, isso geralmente vai pela potencialidade de abrir outras potencialidades. Por esse motivo, percebe-se que o caráter objetivo, mas abstrato da Intuição Extrovertida faz com que a função, ao mesmo tempo em que mergulha no objeto, faz isso distanciando-se da experiência, de tudo e de todos, porque é a especulação objetiva que importa, não o uso das coisas em si. A Ne tem uma tendência expansiva bastante específica, justamente relacionada a essas novas pulsões chamativas do mundo abstrato que a atraem a seguir explorando.
O funcionamento da percepção encabeçada pela Intuição Extrovertida é de querer ver o mundo de forma bastante expansiva e rasa, portanto. Como as hipóteses pulam no indivíduo sem filtro ou lastro, a Intuição Extrovertida expande-se por novas conexões e especulações, preterindo o aprofundamento ou a intensificação da sua relação com cada coisa em específico. Metaforicamente, é como se a Intuição Extrovertida tivesse a grande tendência a semear ideias que nunca fosse colher ou cultivar por completo. A árvore em potencial é mais interessante que a árvore real, o que faz a Ne geralmente preferir semear e aproveitar outras árvores potenciais. Por isso mesmo, como a potencialidade é algo com muitas direções diferentes, a Intuição Extrovertida é uma função muito propensa à transgressão e, especialmente, à autotransgressão. A transgressão de regras em nome da exploração é comum à percepção extrovertida num geral, principalmente dominante, mas a autotransgressão, aquela que corre o risco da inconsistência pela constante exploração de tangentes e divergências, é mais específica à Intuição Extrovertida. O risco da inconsistência existe porque uma semente interessante pode estar tanto no mesmo caminho usado até então quanto em caminhos paralelos, ou caminhos passados, ou caminho sem nenhuma relação à ideias de interesse atual. A Ne é inconsistente porque caminha em uma berlinda que sempre dá a chance da mudança drástica em nome de uma potencialidade. Isso tende a facilitar o usuário de Intuição Extrovertida a trabalhar e retrabalhar diferentes conceitos, hipóteses e projetos, o que pode gerar inconsistência de gostos, interesses, métodos e intenções. Por ser uma função irracional, ela flutua de forma menos estruturada, ao sabor do que lhe chama mais atenção, sem um processo de julgamento e tomada de decisões claro atrelado a ela. Isso demonstra a extensão de que é capaz essa mesma inconsistência que transgride a si mesma, questiona a si mesma e torce a si mesma. Muitos usuários de Intuição Extrovertida têm esse fenômeno de forma tão clara e tão intensa que é difícil sequer resumir seus projetos ou opiniões ao longo do tempo, pelo quanto eles foram alterados ou expandidos com frequência. Outros usuários de Intuição Extrovertida direcionam essa transgressão de si também para fora, buscando sentir como se estivessem torcendo e questionando os conceitos e ideias alheios, o que pode ter implicações políticas (mas não associadas a nenhuma ideologia em específico). A autoidentificação com a transgressão é comum na Intuição Extrovertida. Além disso, esse fenômeno lida de uma forma peculiar com a existência de sentido e com a falta dele. Embora haja busca de interpretação de significados em algumas coisas, não existe apego na Intuição Extrovertida a respeito desses significados, menos ainda devoção a eles, e esse tema é menos sensível à função. Por causa disso, a Ne também pode mais facilmente abraçar a completa ausência de sentido e usar com complexidade o nonsense e o absurdo.
Também por isso, existe uma tendência da Ne a preferir um inusitado que, se bem alcança e rompe limites, continua tendendo a ser raso. Isso porque, na vasta maioria das vezes, o importante na Intuição Extrovertida é a transgressão de ideias pela transgressão de ideias e o teste de hipóteses pelo teste de hipóteses. O inusitado frequentemente alcança dimensões do excêntrico pelo excêntrico e do perturbador pelo perturbador, mas de uma forma que se afasta do estético e, por isso, tem como objetivo último a própria transgressão. As ideias concatenam-se entre si sem muita dedicação a apenas uma, contanto que elas possam representar o inusitado que tanto seduz a Intuição Extrovertida. Por um lado, essa relação da Ne primariamente com o campo das ideias torna-a a função extrovertida que mais se afasta do senso comum dado à extroversão. Muitos usuários de Ne-dominante relatam uma necessidade baixíssima de envolvimento com pessoas, justamente porque o objeto que lhe é foco frequentemente se afasta do mundo concreto ou social. Embora todos os extrovertidos, devido a vieses, possam identificar-se com a chamada “introversão social”, esse fenômeno é ainda mais comum entre aqueles com Intuição Extrovertida dominante. Por outro lado, essa função também tem uma capacidade singular de envolver o mundo externo pelas ideias, e isso inclui também as pessoas. Existe uma tendência na Ne em todas as posições a sentir-se encorajada ao compartilhamento de ideias com o exterior. Esse fenômeno é ainda mais claro nos extrovertidos usuários de Ne (ENxP e ESxJ) pelo caráter objetivo de suas formas de lidar com o mundo. É comum que, entre os usuários dessa função, esses 4 tipos declarem-se apreciar o compartilhamento de ideias sobre “qualquer assunto”, embora façam isso de forma diferente. O método de brainstorming é uma boa metáfora para o funcionamento desse compartilhamento que também costuma ser bastante apreciado pelos usuários, particularmente, como dito, os extrovertidos com Ne. Esse método também representa a exploração de potencialidades de forma mais rasa, ou o engajamento em projetos sem semeá-los direito. Como a Ne é porosa ao input externo, ela tende a apreciar esse tipo de troca de hipóteses e especulações. Uma forma mais solitária de representar esse tipo de pensamento é a criação de mapas mentais, que buscam sistematizar, no papel, as várias conexões feitas a partir da leitura ou estudo de determinada fonte, favorecendo a expansão dessas conexões de ideias e conceitos. Como sempre existe uma nova tangente ou hipótese, e as ideias desdobram-se entre si para mais e mais associações, a Intuição Extrovertida é uma função que se associa muito ao processo de complexificar as coisas. Ela facilmente descamba não apenas em complexificação, mas também em complicação. A constante adição de novos projetos ou sementes de ideias, de novas tangentes e correntes de raciocínio, pode levar a complicações vistas como desnecessárias para as outras funções. A aptidão que a Ne tem com a complexidade é invejável, mas também gera a tendência de complicar tudo.
Existe algo comum nas descrições da Intuição Extrovertida que atrai identificação de quase todos os tipos com facilidade. Possivelmente, algo na cultura das redes sociais encontrada atualmente exerce um poder identitário que faz ser importante distinguir o que é e o que não é Ne. Como já foi dito nos textos introdutórios sobre a tipologia, as descrições das funções e dos tipos tentam passar um arquétipo que, em última instância, representa apenas uma forma de se ver o mundo, uma tendência a como se prefere lidar com informações. Embora isso signifique que toda função pode manifestar-se de formas imprevisíveis, fora do esperado e pouco comum, e também explique que as funções cognitivas não são comportamento ou habilidades intrínsecas, também é importante notar que as tendências de visão de mundo não são tão flexíveis a ponto de que o próprio padrão seja inobservável. Isso significa que os exemplos de comportamentos comuns apresentados aqui devem ser usados como um parâmetro em certa medida. As confusões de outros tipos com tipos de Intuição Extrovertida alta (xNxP) são tão comuns que é importante criar-se uma imagem o menos genérica possível da função. Mesmo assim, as funções são, quase por definição, tendências genéricas, fazendo com que os mesmos exemplos usados como parâmetro não possam ser usados como definidores garantidos do uso da função. A compreensão do “arquétipo” que constitui a Intuição Extrovertida passa pela compreensão do mecanismo da função tanto quanto por suas manifestações culturais e seus comportamentos comuns. A Intuição Extrovertida tem outro detalhe interessante porque seu uso mais complexo e mais refinado (dominante) também é, de certa forma, raso, como foi dito. Mas essa palavra não pode ser interpretada erroneamente. É comum que usuários de Ne baixa (xSxJ) leiam seu uso de Ne como “raso” porque apreciam usá-la em momentos de lazer ou em nome de suas funções mais altas (um brainstorming para criar um projeto sólido e estruturado, por exemplo, ou a especulação e o uso de associações para uma interação profícua e amigável). Como os conceitos associados à Intuição Extrovertida parecem estar “na moda”, essa identificação fica mais fácil. Mas, para a Intuição Extrovertida alta, especialmente a dominante, embora a exploração de cada ideia seja rasa, o indivíduo em si mergulha nessa exploração por si só, como o ponto central de sua orientação no mundo. Ou seja, mesmo uma exploração pueril é levada com complexidade.
Até por isso, a maioria das manifestações intelectuais da Intuição Extrovertida dão complexidade ao mundo e tentam lidar e navegar nesse mundo complexo de ideias e associações. A Teoria do Caos na matemática e na física trata exatamente de sistemas complexos e dinâmicos, ou seja, conjuntos de elementos que interagem, articulam-se entre si e causam mudanças ao longo do tempo. De forma interessante, a Teoria do Caos que tenta inserir a enorme complexidade em diferentes áreas do conhecimento também é determinista, bem como poderia sugerir o caráter objetivo da especulação na Intuição Extrovertida. Ela não é teleológica, na medida em que a teleologia imagina um rumo transcendental preferido e predeterminado (o que poderia ser associado mais ao caráter introvertido), enquanto o determinismo vê o objeto como dado, e tenta prever esses desdobramentos e associações feitas em um sistema complexo demais para ser simplificado. Da mesma forma, existem correntes teóricas e práticas que tentam gerar previsões de padrões e que dialogam com a Intuição Extrovertida pelo mesmo motivo, como é o caso dos trendsetters no mundo da moda, que tentam usar a especulação de diferentes variáveis complexas para tentar traçar as tendências (trends) que definirão os rumos mais ou menos abstratos do campo. Já uma abordagem de método filosófico que também dialoga com a Intuição Extrovertida é o método socrático, que se baseia no questionamento infinito que busca desconstruir ideias já estabelecidas, o que é um campo bastante sensível para a Ne. O condutor do método socrático se põe no papel de apresentar diferentes ideias, tangentes e conexões que servem para gerar a dúvida muito mais que resolvê-la, ampliando a complexidade do mundo e dos conceitos bem como a Intuição Extrovertida, irracional e abstrata, é capaz de fazer.
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